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8ª edição – Crônica: “O fio de Ariadne” – Oswaldo Eurico

O fio de Ariadne

Oswaldo Eurico

Existem pessoas que sonham acordadas, outras que nem lembram do que sonharam à noite. Sou do primeiro grupo, embora o Belchior já nos tenha dito na voz da Elis Regina “viver é melhor que sonhar”. Concordo! Vivo sonhando enquanto vivo e vivo enquanto sonho. Uma combinação perfeita!

Tudo aconteceu por causa desse jeito com os pés na Terra, os olhos no Céu, um olho no padre, outro na missa. Eu conto para vocês!

Estava na Grécia! De vez em quando, viajo para lá. Dessa vez, conheci Ariadne, a filha de Minos. Os cachos perto das orelhas conduziam meu olhar. A história seguia e eu seguia o seu fio para não me perder nas vielas desse mundo. Estive em vários lugares procurando a princesa escondida nas tramas da história. Procurei emoções fortes. Sobrevivi a envenenamento em Verona. Suportei o calor do Egito, mas não as serpentes encantadas e nem consegui decifrar o enigma da esfinge. No Ceará, procurei alguém com os lábios de mel, mas um português chegou antes. Voltei para a África no ritmo e nas cores de um coração corajoso capaz de matar um leão a cada dia para descansar a noite entre véus e turbantes coloridos. Na Índia, os temperos e os perfumes me envolviam. Os tigres traiçoeiros me atacavam e eu nem bengala tinha. Consegui chegar ao Japão. Os olhos de gueixa não me enxergavam. Saí debaixo das cerejeiras. Fui cantar no alto da palmeira.

Numa tarde, ela apareceu com seus caracóis ao lado das orelhas e conversando com sua amiga. Interessante ter nome de flor e conversar com alguém cujo nome significa “abelha”. A Rosa e a Débora! A minha flor da Ádria não notou o meu olhar, mas a visão aguçada da sua amiga percebeu minhas intenções misteriosas como a noite, mas claras como o dia. Depende de quem vê. Entrei no templo e procurei o altar de pedras douradas. Não faria nenhum sacrifício, mas foi difícil deixar a musa do lado de fora. O serviço religioso me chamava.

Não sou Odisseu. Não tenho filho Telêmaco. Atenas não me protege. Posseidon não está com raiva de mim. Nem os conheço para falar a verdade. Hoje temos outros deuses ainda mais humanos em suas paixões. Prefiro negá-los. Sou da exclusividade. Sou da simplicidade. Os hebreus combinam com meu pensamento e modo de vida. A Grécia serve para embelezar a linguagem e situar a todos quando se quer insistentemente ser ocidental. É o berço clássico, zona de conforto artístico e intelectual. Vamos desenrolando a história, desatando seus nós. Às vezes, a linha endurece e vira chicote. Pavio de vela, pavio de dinamite. Umas explosões, umas chamuscadas e algumas chibatadas. É o preço para se tecer a malha da vida. Com fios emendados, felpudos de um lado e gastos de outros vamos criando o tecido de cobrir a existência debaixo do sol. Procurei alguém para me ajudar na trama de viver. Ofereci minha lã, meu linho, meu sisal. Apareceu outro com fibras óticas em roupas sintéticas. A Rosa foi pra outro jarro.

Deixei o tecido dobrado num canto e fui para outros ofícios. Quebrei pedras e construí castelos de proteção. Criei móveis de madeiras e de ossos. Consegui janelas quase invisíveis de cristal. Era um general agora! O movimento astuto da serpente, os passos surpreendentes dos felinos e o voo rasante das águias. E seguia meu caminho com passos pesados e enormes marfins. Esmaguei muito. Derrubei árvores e arremessei muita coisa pela frente. Não enxergava direito, mas ouvia até os sons ainda sem som. Metálico forjei armas de puro aço temperado. Ácido espelho de separar imagens! De um lado o duelo, de outra a sagração. O coração ferido. O ombro tocado. O porte altivo e a coroação. Na cabeça mais metais. Nos cofres também.

Um arauto chega! Traz a notícia repentina da paz. Desço do trono e caminho para fora do palácio. Sigo em frente. Não tenho mais confrontos. Não mais embates. O minotauro está morto. Olho por cima da arquitetura de Dédalo e vejo como era fácil sair de lá. Descobri que ainda tenho fios de vida para muita trama. De mãos dadas com ela estamos fazendo os tapetes voadores cotidianos. Quando é preciso, vão para o chão com cuidado. Na parede ficam pendurados contanto narrativas sem palavras. Se fica enrolado, é por pouco tempo. Muitas vezes é preciso bater com força nele para livrá-lo da poeira da mesmice. Um bom jato d’água fria leva embora toda a sujeira. Um banho de sol e ele volta novíssimo para o nosso lar. Compramos a preço alto um estoque de todo tipo de fibras naturais para remendos e bordados. Usamos também para redes de pesca de amigos e mosquiteiros impenetráveis dos nossos dóceis. Ariadne não usa tesouras, pois não acredita no destino. Ela segue seu caminho com um escritor mortal ao seu lado também mortal até o fio da história acabar.

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Renato Cardoso

Renato Cardoso é casado com Daniele Dantas Cardoso. Pai de duas lindas meninas, Helena Dantas Cardoso e Ana Dantas Cardoso. Começou a escrever em 2004, quando mostrou seus textos no antigo Orkut. Em 2008, lançou o primeiro volume de “Devaneios d’um Poeta” e em 2022, o volume II com o subtítulo "O Rosto do Poeta". Graduado em Letras pela UERJ FFP e graduando em História pela Uninter. Atua como professor desde 2006 na rede privada. Leciona Língua Inglesa, Literatura, Produção Textual e História em diversas escolas particulares e em diversos segmentos no município de São Gonçalo. Coordenou, de 2009 a 2019, o projeto cultural Diário da Poesia, no qual também foi idealizador. Editorou o Jornal Diário da Poesia de 2015 a 2019 e o Portal Diário da Poesia em 2019. É autor e editor de diversos livros de poesias e crônicas, tendo participado de diversas antologias. Apresenta saraus itinerantes em escolas das redes pública e privada, assim como em universidades e centros culturais. Produziu e apresentou o programa “Arte, Cultura & Outras Coisas” na Rádio Aliança 98,7FM entre 2018 e 2020. Hoje editora a Revista Entre Poetas & Poesias e o Suplemento Araçá.

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