8ª edição – Conto: “Mitologia do Eu” – Erick Bernardes
Mitologia do Eu
Erick Bernardes
Ontem durante a noite, ligando o rádio (verdade, absurdamente, apesar de estarmos na era da internet sintonizei em jornal de rádio), ouvi sentenciarem ao final da matéria: “Cada dia que passa a ciência nos prova o poder crescente do raciocínio humano”. Aquela frase assim, ao pé da madrugada, me perturbou. Será mesmo tão promissora esta nossa ciência das coisas? Ao que sei, desde que o homem se entende como tal, seu senso crítico vem perguntando: o que realmente é a vida?
Insônia não tenho, entretanto, por razões desconhecidas, senti a necessidade antiquada de ler um livro. Livros pós-modernos de autoajuda os tenho aos montes, porém nunca encontro nada de contemporâneo que defina o sentido de viver. No cata-cata de volumes que empreendi, prefácio nenhum atendia à minha busca intempestiva sobre o princípio vital. No entanto, o acaso (ou algum pregar de peça do destino) lançou-me nas mãos o já há muito esquecido livrinho do Luiggi Pirandello. Isso mesmo! A brochura em língua italiana, tão negligenciada e em volume azul, despencou da terceira prateleira da sala. Verdade, faz tempo encontrava-se marcando presença ali na estante, só por causa da linda capa de couro lustrado. A beleza põe mesa até no senso comum, não é mesmo? O livro azul só estava lá por causa da boniteza. Todavia, a vontade de folhear a obra encaminhou-me à absurda constatação: o jornalista da rádio estava errado quanto à evolução humana, o mundo não evoluiu, o universo globalizado regrediu. Quem imaginaria que um texto ficcional de um autor maluco, escrito já vão lá mais de cem anos, legasse ao meu espírito o argumento acerca daquilo que o pensamento pós-moderno não pode me dar. Que maravilha! O argumento. O prefácio de “Seis personagens em busca de um autor”, do escritor italiano, continha a resposta. Sim, atirava-me na cara o segredo, discorria didaticamente sobre o sopro essencial tão universal a cada um, particularmente. Em resumo, ele dizia mais ou menos que o que pensamos ser a vida é a naturalização de uma ideia apenas, a vida compreendida como normal. O sentido vital mesmo, explica-se pela arte. É o jogo fabular das relações, somos frutos do faz de conta, toda realidade ou vida concreta está destinada a se revelar amanhã uma ilusão.
Durmo agora mais tranquilo, tendo na incerteza a própria definição de viver. Somos personagens, os títeres que vão questionar os valores que nós mesmos criamos. Como agora, no alvorecer da agônica madrugada, desvelo a voz que horas atrás, naquela reportagem, anunciava o poder científico crescente do raciocínio pós-moderno. Amanhã, talvez quando acordar, mundo globalizado, internet, eu faça a mesma pergunta: o que é mesmo a vida?
*Esse conta é uma adaptação do conto “Homo Sapiens”, do livro Panapaná, de Erick Bernardes.