Lucas Salgueiro

Gente de verdade circula domingo

GENTE DE VERDADE CIRCULA DOMINGO

Quando tu sai de casa domingo logo de manhã, não tão cedo, é onde dá pra ver gente de verdade circulando, batendo pé pela vida. Dia que uma parte do povo conseguiu dormir um pouquinho mais e que outra tá tentando forrar o dinheiro que vai garantir a semana. Tá tudo caro, se der mole fica pra trás. Toda favela, periferia ou quebrada se parece nessa hora. A feira levanta antes de todo mundo, faz o cheiro do ar ficar diferente, parece mais natural. O frango assado já vai torrando na padaria sob as vistas do vira-lata magro e dos parceiros que querem fazer a boa pra casa, dando descanso pra dona Maria no almoço do dia. É o cara que trabalhou seis dias da semana e só quer ficar suave no domingo. Quatro horas tem jogo, se pá ainda tem uma carne pra assar e uma cerveja pra gelar depois de comer. De um lado, a rapaziada ainda desce a rua saindo do baile que rendeu até de manhã. Não é o pessoal do movimento, é o cria que se acostumou a ter só aquela diversão perto de casa sábado a noite. Vem em brasa, cansado mas com movimento esperto, caminhada meio melancólica, mas tentando passar alguma alegria do que tava sentindo. Nem quer lembrar que já é domingo, ainda é sábado, então a segunda-feira tá longe, talvez chegue daqui uns meses ou anos. As mães já se acostumaram com a fuga de madrugada, nem estressa. Pai aqui não existe muito. Do outro lado, os irmãos caminham para os cultos e missas que logo vão começar. Essa hora é só o mais fervoroso, em chamas também, quer chegar antes de todo mundo com sua Bíblia embaixo do braço suado. Pra uns vendo de longe parece essa a melancolia, mas geralmente é quem tá mais feliz que o domingo realmente chegou. Quando não é domingo para o crente, o única dia que importa é o da volta do Senhor. Esse não sabemos quando é. Quem trabalha domingo é mais desenrolado que o normal, rapaziada do corre, do informal, gente que movimenta a cidade. Feirante, camelô, motorista, atendente. Domingo de manhã é experiência antropológica, é livre-arbítrio onde cada um escolhe o que está fazendo com sua própria vida, inclusive quem só teve que escolher sobreviver. No final, todo mundo circulando ali é sobrevivente, cada um vendo seu jeito de suportar a vida de verdade.

 

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Lucas Salgueiro

Educador. Trabalhador da educação em salas, chãos e pesquisas. Escrevo crônicas que tentam captar a realidade da sociedade vista de baixo, do cotidiano banal.

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