7ª edição – Conto: “A hora da estreia” – por Erick Bernardes
A hora da estreia
Erick Bernardes
O leitor já viveu daqueles dias transbordantes de alegria e certeza de ter acabado de encontrar seu lugar no mundo? Pois é, experimentei tamanha sensação transcendente. Não me faltaram elogios e felicitações.
Explico: haviam transcorridos dois meses de expectativas antes de eu ministrar a palestra sobre Clarice Lispector. E era hora, chegou o momento. Sim, aos candidatos do vestibular, palestrei sobre o último livro escrito por Clarice. Tensões e ansiedade surgiram como mágica, algo decerto natural diante do auditório que, se não estava lotado, ao menos obteve número suficiente de alunos do ensino médio para assistir, conferindo assim, certo clima de importância extrema ao evento. Indispensável reconhecer o sucesso da fala sobre questões em literatura. Slides, explicações didáticas, perguntas, explicações novamente. Entusiasmei-me. Já dizia o professor de Teoria: “entusiasmar-se é revestir-se de Deus”. Bem. Fato inegável o interesse do público presente. Tudo ótimo e maravilhoso! Entusiasmo, revestido por Deus. No entanto, com o microfone na mão a me amplificar inseguranças.
Resumo típico de dramaturgia. “A hora da estrela”, uma novela sobre uma pobre mulher nordestina (vejam, a anteposição do adjetivo “pobre”, aliás riquíssimo adjetivo, serviu-me de recurso impressionista). Pobre alagoana, personagem e mulher, vivente e insegura. Uma coitada, datilógrafa, cujo destino fora morrer atropelada, achou antes que haveria para si um dia de estrela. Coitadinha, nem o sangue a esvair sobre o asfalto conseguira chamar atenção.
Concluída a apresentação. Houve palmas no auditório e agradeci. Reconheceram-me o empenho de docente novo, aplausos, não ouvi senão aplaudirem. Apertaram-me as mãos os alunos, diversificadamente, mãos aos montes. Desci correndo as escadas da Faculdade de Formação de Professores, estava tarde, precisava ir — e a condução era escassa em São Gonçalo. Era? Necessário reconhecer, o passado e o presente equalizaram se nessa cidade. Certo é que a palestra aconteceu bem, mas precisei correr, o ônibus apontava do outro lado da rua. Lá estava passando o coletivo, lá do outro lado. Gritei e atravessei apressadíssimo, o motorista não viu nem ouviu, infelizmente, não havia como ouvir. O veículo partiu sem mim. Confesso que isto de correria me atordoou os sentidos; prostrei-me no meio da pista, ofegante e sem norte. Ao longe, o motor possante de um carro de passeio. Não, não tão longe assim. Na verdade escutara o ronco da máquina envenenada já bem perto — e o som automotivo bonito, alucinante, anunciando a inevitável desgraça. Ouviu-se o barulho do impacto, o capô do carro me suspendeu de súbito e cai, tudo instantâneo. Velocidade de Grand Prix, um Porsche vermelho me atropelou e foi embora. Foi-se embora.
Mal sabia eu que aquele dia de importância acabaria ali. Meus dias se acabaram ali. Mais baixo impossível, ali caído, ao rés-do-chão.
Nota: Esse conto é uma adaptação do conto homônimo presente no livro Panapaná: contos sombrios, de Erick Bernardes.