Renato CardosoSOB O OLHAR DE UM PROFESSOR

Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#15 – Crônica: “Quando não é mimo, é falta de atenção” – Renato Cardoso

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QUANDO NÃO É MIMO, É FALTA DE ATENÇÃO
Renato Cardoso

Muito se fala hoje que a geração atual é extremamente mimada, e não deixa de ser, mas existem situações que vão muito além do mimo, beirando a falta de atenção parcial ou completa. As famílias estão desestruturadas, precisando, por vezes, de orientações de como educar seus filhos.

Eu leciono para crianças de 8 a adultos de 60 anos há 17 anos. Já passei e vi muitas coisas, mas uma história, recente e especial, me fez parar para escrever. Uma história que me fez refletir sobre os limites do mimo e da falta de atenção.

Tudo transcorria tranquilamente numa terça normal de aula. Já estava no último tempo do turno da tarde e já pensando no noturno que me esperava. Era uma turminha falante de terceiro ano do Ensino Fundamental 1. Eles estavam com uma amiga de profissão em uma das salas da escola, até que…

Vamos chamar o aluno de Cris (nome fictício. Prefiro preservar os nomes das pessoas e instituições, pois o que vale é a mensagem passada). Ele estava agitado, de vez em quando isso acontecia. Peguei a turma com a professora e os levei à sala de aula deles.

Notei que Cris não veio. Um aluno me disse que ele havia ficado na escada sentado. A professora regente estava na sala, solicitei que olhasse eles para que pudesse buscar Cris. A professora prontamente me ajudou.

Quando cheguei a escada, ele estava de cara amarrada e falando alto que não queria ir (fiquei triste e pensativo, pois achei que o problema seria comigo). Chamei-o, ele não atendeu. Uma ajudante também conversou com ele e foi tudo em vão. Somente a professora regente conseguiu colocá-lo para dentro.

Ele entrou. Ela fechou a porta. Ele me olhou e juro que fiquei todo arrepiado. Pedi para que se sentasse no seu lugar e o mesmo respondeu que não queria estar ali e que não queria fazer dever. As demais crianças ficaram me olhando, esperando uma reação minha (talvez de explosão).

Pedi que elas fizessem os exercícios solicitados e que não olhassem para nós, pois gostaria de conversar com Cris sozinho. Cheguei perto dele e solicitei que se sentasse na última carteira, pois queria falar com ele. Ele topou.

Sentei-me à sua frente e perguntei o que estava acontecendo. Cris me disse que estava triste, por isso não queria estar ali. Perguntei se quem causou a tristeza tinha sido eu e ele disse que não (percebi que ele baixou a guarda e que a fama de mimado, na verdade, poderia ser outra coisa).

Então expliquei a ele que era normal as pessoas ficarem tristes, que inclusive eu ficava, mas não tinha a mesma reação que a dele, pois as pessoas não tinham culpa. Continuei dizendo que ele teria toda a liberdade do mundo, caso quisesse, para me contar o que estava acontecendo.

Falava baixo, deixando claro para ele que não queria que ninguém ouvisse e que tudo ficaria entre nós. Perguntei para ele se achava justo atrapalhar a aula e ter aquela reação comigo, que sempre o tratei bem. Ele respondeu que não, que não tinha nada a ver comigo.

Voltou a repetir que não queria fazer dever (reação típica do mimo). Retruquei dizendo a ele que só queria que ele sentasse em seu lugar. Ele, depois disso tudo, prontamente aceitou. Levantou-se e foi. Ele estava mais tranquilo e, por consequência, eu também.

Uns 20 minutos haviam se passando. Comecei a explicar os exercícios a todos, quando percebi que sozinho ele abriu a apostila e começou a fazer tudo que era solicitado. Havia levado um relógio grande de ponteiros para sala, pois explicaria como ler as horas em inglês.

Notei que ele ficou observando o relógio e no final da aula perguntei: “Cris, você sabe ler as horas nesse relógio?” e ele respondeu: “Sim, mas não disse nada porque não queria atrapalhar sua aula”. Percebi neste momento que a conversa fez efeito. Realmente ele não quis atrapalhar mais. Ele havia me escutado.

Antes do sinal tocar, disse a ele que no dia seguinte ensinaria as horas (não deu tempo devido ao ocorrido). Mandei-os guardar o material. Formaram e foram entregues aos pais. Fui para o noturno, mas aquilo ficou na minha cabeça.

No dia seguinte, ao chegar à sala de Cris, ele me recebeu e me deu uma folha que trouxera de casa. Nessa folha, tinha um relógio desenhado por ele. Elogiei o desenho. Ele o colocou em pé na minha mesa e disse que era para que todos aprendessem como ler as horas.

Peguei o desenho pus no quadro, dando destaque que foi ele quem desenhou. Expliquei a matéria, e fui chamando alguns alunos para que respondessem no quadro, até que ele mesmo me pediu para responder uma questão, assim deixei…

Dias depois, a professora regente conversou comigo, dizendo que havia feito uma reunião com a mãe do Cris e a mesma disse que ele me adorava, pois conversava com ele. Percebi que, depois daquele evento, ele nunca mais havia feito nada.

Realmente Cris sempre foi uma criança que teve de tudo, mas até onde este tudo se refletia em atenção?! Ele sempre foi desafiador, mas até onde a minha reação de calma, e não de explosão, fez ele baixar a guarda?

Antigamente, usamos o termo para crianças que tinham de tudo, que eram super protegidas e, inclusive, tinham atenção excessiva dos pais. Mas e hoje?! Eles continuam tendo de tudo, mas e a atenção, será? Vale a reflexão!

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Renato Cardoso

Renato Cardoso é casado com Daniele Dantas Cardoso. Pai de duas lindas meninas, Helena Dantas Cardoso e Ana Dantas Cardoso. Começou a escrever em 2004, quando mostrou seus textos no antigo Orkut. Em 2008, lançou o primeiro volume de “Devaneios d’um Poeta” e em 2022, o volume II com o subtítulo "O Rosto do Poeta". Graduado em Letras pela UERJ FFP e graduando em História pela Uninter. Atua como professor desde 2006 na rede privada. Leciona Língua Inglesa, Literatura, Produção Textual e História em diversas escolas particulares e em diversos segmentos no município de São Gonçalo. Coordenou, de 2009 a 2019, o projeto cultural Diário da Poesia, no qual também foi idealizador. Editorou o Jornal Diário da Poesia de 2015 a 2019 e o Portal Diário da Poesia em 2019. É autor e editor de diversos livros de poesias e crônicas, tendo participado de diversas antologias. Apresenta saraus itinerantes em escolas das redes pública e privada, assim como em universidades e centros culturais. Produziu e apresentou o programa “Arte, Cultura & Outras Coisas” na Rádio Aliança 98,7FM entre 2018 e 2020. Hoje editora a Revista Entre Poetas & Poesias e o Suplemento Araçá.

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