João Rodrigues

Bento, o boêmio

Seria uma noite como outra qualquer. Confesso que seria, se a personagem de minha história fosse uma pessoa qualquer. Só que me refiro a Pedro Bento: ímpar, quando se trata de levar a vida numa boa. Não de maneira irresponsável ou pervertida, pelo contrário, senhor de uma integridade única, incapaz de tentar se dar bem em cima de outras pessoas – coisa rara hoje em dia.
Bento gosta de uma cerveja gelada, assim como a maioria dos brasileiros, de uma boa música e, é claro, de uma bela mulher, mais precisamente de uma mulata, como faz questão de enfatizar. Não que dispense as de outras etnias, pois com ele não há preconceito, apenas questão de gosto. Apreciador de um bom papo tipo “malandro maneiro”, ele tem um estilo próprio de falar, convencer, conquistar… Vai assim, falando, ouvindo… falando, sorrindo… falando… falando. E quando menos se espera, uma presa cai na teia da aranha.
Lapa, Flamengo, Glória, Catete… O boêmio ouve Cartola, Noel, Vinícius e outros titãs da boemia, apreciando uma boa conversa numa roda de cerveja nesses botequins da vida. Cabelos grisalhos (precoce, garante), olhos vivos, esbelto, sorriso largo, inconfundível. Entre um gole e outro e uma baforada de cigarro lá se vai ele, aproveitando mais um inédito momento de sua vida, mas um momento único, assim como ele.
“Esses garotos de hoje não sabem viver”, dizia sempre.
Andréa é a mais nova “amiga” que ele acabou de conhecer. Mulata, olhos negros e grandes, dentes alvos e sorriso tipo “avenida”, Vênus talvez não fosse tão linda, segundo ele. Poderia ter o homem que quisesse, e foi o que ela fez, escolheu o Bento, garante ela. Ele contesta a versão da “amiga” – foi ele quem a conquistou. Quem tem razão não sei, sei apenas que a conversa foi fluindo solta, sem pressa, cada palavra molhada com um gole de cerveja gelada. A mulata cantava suas façanhas de seu último carnaval, desfilando na Sapucaí, seminua, coberta de muita purpurina e suor, inflando os desejos dos pobres mortais solitários (e dos acompanhados também).
A fumaça de mais um cigarro aceso saía fina por entre os dentes de Bento, mais precisamente pelo canto esquerdo da boca, enquanto ouvia a mulata se endeusar e voar nos seus memoráveis momentos na avenida.
A garrafa está vazia. Pede outra. Acende outro cigarro, sopra a fumaça pelo canto esquerdo da boca, fininha, como se fosse um ritual, cruza as pernas, bebe mais um gole enquanto ela fica em silêncio, observando todos os movimentos dele. Ela cruza as pernas deixando aparecer as coxas grossas e moldadas à custa de muitos carnavais, e por causa da genética também, garante ela. Ele percebe e dá uma olhada sem compromisso. Ela nota. Agora ele as olha maliciosamente, ela sorri. Um frio cortante passa entre eles. O silêncio, enfim, é quebrado. O papo rola cheio de “más intenções”. O garçom os olha com aquele jeito de quem quer fechar. Percebem que são os últimos clientes. Pedem a conta. Saem os dois pelas ruas da Lapa, sem destino. Passam noutro botequim, estão fechando. Pedem duas latinhas de cerveja e saem bebendo. A lua surge por detrás dos arcos da Lapa, ou será o sol? Não se sabe ao certo.
Daqui a pouco o domingo está chegando, ou já chegou. É folga. Então resolvem pernoitar em um motel qualquer da Lapa, dos mais baratos, não por opção, mas por falta de opção, pois não há mais grana pra pagar um melhor. Ele olha pra ela e sorri, meio sem jeito. Ela retribui o sorriso, concordando. Sobem as estreitas escadas sorrindo. Desviam-se de um garçom, que olha para a morena cheio de má intenção. Ela sorri pra ele; Bento nem liga. Se garante.
Abrem a porta. Uma luz vermelha está acesa sobre uma cama redonda. Ela vai até a janela e fecha-a. Bento se dirige ao frigobar. Tira a carteira do bolso, conta as poucas cédulas que ainda existem. Faz um cálculo mental rapidamente. Abre uma garrafa de vinho barato e oferece uma taça a Andreia. Eles bebem vagarosamente, como se a vida fosse uma eternidade.
O telefone toca, ele acorda; é a recepcionista avisando que o período acabou. Sobre a cama, corpos nus, copos caídos, uma garrafa de vinho vazia. A mulata dorme. Desejo de muitos, realização de um único homem. Vai ficar outro período, avisa. Sua cabeça gira, o mundo gira. Corpos e copos se misturam. Duas almas se misturam em um só corpo. Único, assim como ele.

João Rodrigues

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João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

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