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7ª edição – Crônica: “Ensaiando o perdão” – por Oswaldo Eurico

Ensaiando o perdão

Oswaldo Eurico

Acabei de sair da cozinha onde deixei uns legumes no forno para gratinar. O arroz está no fogo e o feijão já está temperado. Tradição brasileira assegurada. Ou quase! Falta uma proteína animal. Vai ficar faltando. Não gosto de carne. A minha mesa é assim: colorida, cheia de aromas e texturas. É meu estilo. Aprendi com meus pais a preparar a comida. Os amigos e demais parentes me influenciaram bastante. Adaptei receitas a nossa realidade, experimentei muito. Pesquisei novos temperos, ensaiei novas possibilidades. Ressignifiquei minha cozinha. Acredito deixar um pouco de mim em cada prato. Tenho um hábito intrigante quando cozinho: experimento muito, testo, improviso, crio combinações inusitadas na hora e não anoto as receitas. Elas surgem e desaparecem como as palavras que escrevo. Algumas vão para o céu da boca de alguém e lá vivem para doce lembrança ou amargo pesadelo. Outras seguem condenadas ao esquecimento, o limbo donde se deseja redenção.

Os legumes estão murchando no tabuleiro. Logo os tomates estarão moles, no ponto que gosto tanto. A berinjela ao fundo já deve estar cozida! As cebolas dominando a todos com seus anéis poderosos. O cheiro está invadindo o apartamento e me dizendo: “levanta da cadeira e vá desligar o forno”. Sabem de uma coisa? Eu cozinhava com o computador ligado. Da cozinha eu conseguia ouvir a reunião que acontecia. Naquele momento, minha presença não era requisitada. Não havia ninguém em casa além de mim. Comeria o almoço sozinho? Não! Estou repartindo com você agora a refeição. Está bom? Espero que sim.

Às vezes penso: como se consegue fazer tantas coisas ao mesmo tempo. Talvez não entenda por ter nascido homem. Na maioria das vezes, parece que as mulheres são mestres na arte de desempenharem vários papeis simultaneamente. Multitarefas, vários talentos. Eu quase deixei a comida queimar porque estava ouvindo meu colega falar. Escrevia um texto de agradecimento, prestava atenção na reunião e ao forno. Quase tive uma estafa. Estou morrendo de fome.

Chegou minha hora de participar! O forno estava desligado, os tomates cada vez mais murchos… Participei ativamente do reunião expressando minha opinião, buscando soluções, enfim… Fim do encontro virtual. As despedidas afetuosas. O compartilhamento do meu texto com os colegas foi feito. Este que você lê agora ficou marinando.

Não sei se marinar seria o termo certo. Estou longe do mar. Sal em excesso não é tão interessante em tempos tão fitness, ainda mais o meu que não é do Himalaia. Contudo, gosto do termo marinada, lembra realmente mar e este termo está ligado realmente ao mar. Marinada também me lembra Marina, lugar de passeios náuticos, de sofisticação como se encontra nos textos de Marina Colasanti. Gosto muito do seu estilo. Ela fala de maneira única em seus contos capazes de nos mostrar quanto a delicadeza e o olhar criativo são capazes de dar conta de tantos assuntos fortes sem perder a elegância jamais. E nem o humor. Noutro dia, assisti a uma entrevista sua onde ele falava sobre Clarice Lispector. Era um depoimento. Depoimento único de uma grande escritora falando da pessoa da Clarice como somente uma amiga verdadeira e respeitosa é capaz de fazer. Eu sou fã das duas! Sou fã de outras escritoras também. O Brasil é pleno delas. Hoje porém quero escrever para pedir perdão a você por não ter comemorado os cem anos de Clarice Lispector. Eu passo a te contar aí embaixo como foi.

Eu descobri Clarice ainda na minha adolescência com Água Viva. Confesso não ter entendido nada, mas algo me dizia: “Não desista!” Valeu a pena! Li Felicidade Clandestina. Esse conto, no livro homônimo, foi o meu passaporte para a obra da escritora nascida na Ucrânia e renascida no Brasil. Sempre me disseram que para ler Clarice era preciso ter a mente de Clarice. Entre as pessoas que me disseram isso, estava uma ex-aluna, a Sandra Mercês, da minha primeira turma no magistério. Ela e a turma leram comigo esse conto. E gostaram! Depois lemos Doze lendas brasileiras. Os textos foram aparecendo e eu me tornando um leitor da obra de Clarice.

O meu sofrimento se deu por ter esquecido de comemorar o aniversário de cem anos da minha escritora preferida. No dia 10 de dezembro, houve uma vigília literária em homenagem a escritora. Não consegui acompanhar. Não estava muito bem e me retirei para dormir. No dia seguinte, me senti como o homem que matou novamente a escritora que era a mulher que matou os peixes. Senti vergonha dos meus alunos vierem a saber disso. Antes que venham a descobrir, confesso aqui para você, leitor. Estou numa tentativa de ressurreição da autora em sua pequena morte causada por esse escritor sufocado pelos encontros virtuais duma época de confinamento social nunca antes experimentado. Você me entende, leitor? Você me perdoa?

Eu ousei escrever para ressignificar meu sentimento. Aliás, já usei esse verbo lá em cima, no primeiro parágrafo. Ele é uma dessas palavras técnicas criadas por profissionais e que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa ainda não registrou. Não foi utilizado a toa. É jargão de psicólogo. Gosto das narrativas que trabalham a alma humana. A psique me motiva e me atrai. Mostrar a mente e seus encantos e complexidades me encanta numa obra. Clarice é a excelência em matéria de prosa psicológica. Pensemos e sintamos cada palavra dita por essa mestra e comemoremos para sempre a bênção da sua existência entre nós.

Como não posso falar com os mortos, transfiro meu desejo a quem me lê. A senhora com a Lis no peito fez isso conosco. Deixou sua alma gravada em páginas. Quero a felicidade viajando até você na primeira classe, de forma nada clandestina. Curta um amor, não uma paixão. Esse amor seja perfeito segundo a vontade dos que se amam. Reatem seus laços de família e entre os amigos. Se ainda não deu seu primeiro beijo, faça-o durante um passeio feliz com retorno igualmente feliz. Aproveite e viva intensamente tudo que tenha a viver. Viva de dentro para fora e fora para dentro. As suas ideias sejam inusitadas e únicas e jorrem como fontes de água viva de excelente literatura.

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Renato Cardoso

Renato Cardoso é casado com Daniele Dantas Cardoso. Pai de duas lindas meninas, Helena Dantas Cardoso e Ana Dantas Cardoso. Começou a escrever em 2004, quando mostrou seus textos no antigo Orkut. Em 2008, lançou o primeiro volume de “Devaneios d’um Poeta” e em 2022, o volume II com o subtítulo "O Rosto do Poeta". Graduado em Letras pela UERJ FFP e graduando em História pela Uninter. Atua como professor desde 2006 na rede privada. Leciona Língua Inglesa, Literatura, Produção Textual e História em diversas escolas particulares e em diversos segmentos no município de São Gonçalo. Coordenou, de 2009 a 2019, o projeto cultural Diário da Poesia, no qual também foi idealizador. Editorou o Jornal Diário da Poesia de 2015 a 2019 e o Portal Diário da Poesia em 2019. É autor e editor de diversos livros de poesias e crônicas, tendo participado de diversas antologias. Apresenta saraus itinerantes em escolas das redes pública e privada, assim como em universidades e centros culturais. Produziu e apresentou o programa “Arte, Cultura & Outras Coisas” na Rádio Aliança 98,7FM entre 2018 e 2020. Hoje editora a Revista Entre Poetas & Poesias e o Suplemento Araçá.

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