As rosas vermelhas de Gustavo Rückert
O Gustavo Rückert é meu amigo. Eu poderia – e talvez até fosse mais sensato – esconder essa afirmação, afinal de contas estou escrevendo um texto para elogiar o seu último livro. Porque talvez elogiar livro de amigo traga em si um pouco daquele sentimento materno de nunca ver os defeitos no próprio filho. Esse, no entanto, em absoluto não é o caso de “Serão as rosas vermelhas no escuro?” (Editora Bestiário, 2022). Não é porque eu e ele nos conhecemos desde 2007 – ou também porque também temos toda uma história de colegas de graduação e parceiros de caminhadas etílicas – que eu elogio sua obra.
“Serão as rosas…” traz uma poesia extremamente madura, ciente de si própria, com uma incrível precisão nos versos livres. Sim, porque os versos livres muitas vezes precisam ser mais precisos que um soneto, para que a forma poética não vá em direção a um fluxo associativo interminável que pode acabar por dificultar a leitura e, portanto, o acesso do leitor à matéria poética. O livro do Gustavo tem algo raro aos livros de poesias atualmente: unidade. Tendo como mote o pensamento de Ludwic Wittgenstein, a questão principal é a relação das palavras com o mundo. Isso, no entanto, não é óbvio, tendo em vista que a dialética da forma e realidade acaba por ser o dilema central de qualquer obra de arte. No entanto, a coisa vai muito além, como por exemplo:
com olhos roxos e cansados
benevolentes
mau-olhado
daqueles que enxergam
mas não são vistos
(pelos olhos do império)
com olhos de cigana
olhos d´água
que fingem diante da esfinge
oblíqua e dissimulada
olhos de serpente
falsas verdades transparentes
aos olhos d´alma
com olho nu
esticado
olhar provocativo
maior que a barriga
a contemplar
no olho da rua
o olho do cu
com visão dupla
éramos olharmo-nos
por onde escorre
viscoso
olho por olho
intacta retina
vazada
de édipo em seu futuro
ante visto
por um tirésias
luz dos olhos meus
Depois desses versos iniciais tive vontade de, por ordem de importância, tomar uma cerveja com o Gustavo e ler mais Wittgenstein. Aliás, a teoria do filósofo serve, na verdade, como um chão que espelha a realidade. Afinal de contas, como diria Marx, “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas formas; o que importa é modificá-lo.”. E é justamente nesta relação direta entre o mundo das ideias e a vida real que o mundo ao redor ganha contornos de urgência e justiça social:
vamos escrever nossos mortos
festejar seus nomes
marielle herzog galdino
presente
oitenta tiros
na ilha de pedras brancas
olga dandara amarildo
vamos dançar em sua
sinistra sina
memória ironizada
pelo que desgoverna
presidente
(…)
O motor disso tudo, como o leitor mais atento talvez já tenha percebido no meu primeiro exemplo, é a intertextualidade. Não vou aqui entregar tudo, mas dou o benéfico “spoiler” ao adiantar que todas essas reflexões são trespassadas por referências a Fernando Pessoa e Drummond, por exemplo. Não é pouca coisa.
Há, então, em “serão as rosas vermelhas no escuro?” uma unidade, um objetivo literário que não gera panfleto, mas sim reflexão. Afinal de contas, o que serão as rosas vermelhas no escuro? Continuarão vermelhas ou é necessário lançar sobre elas a luz de nossas interpretações, a luz de nossa autonomia como leitor, a luz da Arte?
Termino aqui com um verso-provocação do Gustavo:
(…)
o nome do homem é o homem
do nome é o homem o nome
é o nome o homem do homem
o nome é o nome do nome do homem
na pedra de ecrã rabisco
que todo homem sozinho
carrega em sua voz
uma multidão
“Que todo homem sozinho carrega em sua voz uma multidão”. Porra, Gustavo! Vamos tomar uma cerveja? Vamos modificar o mundo?
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