Cristiano Fretta

As rosas vermelhas de Gustavo Rückert

O Gustavo Rückert é meu amigo. Eu poderia – e talvez até fosse mais sensato – esconder essa afirmação, afinal de contas estou escrevendo um texto para elogiar o seu último livro. Porque talvez elogiar livro de amigo traga em si um pouco daquele sentimento materno de nunca ver os defeitos no próprio filho. Esse, no entanto, em absoluto não é o caso de “Serão as rosas vermelhas no escuro?” (Editora Bestiário, 2022). Não é porque eu e ele nos conhecemos desde 2007 – ou também porque também temos toda uma história de colegas de graduação e parceiros de caminhadas etílicas – que eu elogio sua obra.

“Serão as rosas…” traz uma poesia extremamente madura, ciente de si própria, com uma incrível precisão nos versos livres. Sim, porque os versos livres muitas vezes precisam ser mais precisos que um soneto, para que a forma poética não vá em direção a um fluxo associativo interminável que pode acabar por dificultar a leitura e, portanto, o acesso do leitor à matéria poética. O livro do Gustavo tem algo raro aos livros de poesias atualmente: unidade. Tendo como mote o pensamento de Ludwic Wittgenstein, a questão principal é a relação das palavras com o mundo. Isso, no entanto, não é óbvio, tendo em vista que a dialética da forma e realidade acaba por ser o dilema central de qualquer obra de arte. No entanto, a coisa vai muito além, como por exemplo:

 

com olhos roxos e cansados

benevolentes

mau-olhado

daqueles que enxergam

mas não são vistos

(pelos olhos do império)

com olhos de cigana

olhos d´água

que fingem diante da esfinge

oblíqua e dissimulada

olhos de serpente

falsas verdades transparentes

aos olhos d´alma

com olho nu

esticado

olhar provocativo

maior que a barriga

a contemplar

no olho da rua

o olho do cu

com visão dupla

éramos olharmo-nos

por onde escorre

viscoso

olho por olho

intacta retina

vazada

de édipo em seu futuro

ante visto

por um tirésias

luz dos olhos meus

 

Depois desses versos iniciais tive vontade de, por ordem de importância, tomar uma cerveja com o Gustavo e ler mais Wittgenstein. Aliás, a teoria do filósofo serve, na verdade, como um chão que espelha a realidade. Afinal de contas, como diria Marx, “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas formas; o que importa é modificá-lo.”. E é justamente nesta relação direta entre o mundo das ideias e a vida real que o mundo ao redor ganha contornos de urgência e justiça social:

 

vamos escrever nossos mortos

festejar seus  nomes

marielle  herzog  galdino

presente

oitenta tiros

na ilha de pedras brancas

olga dandara amarildo

vamos dançar em sua

sinistra sina

memória ironizada

pelo que desgoverna

presidente

(…)

 

             O motor disso tudo, como o leitor mais atento talvez já tenha percebido no meu primeiro exemplo, é a intertextualidade. Não vou aqui entregar tudo, mas dou o benéfico “spoiler” ao adiantar que todas essas reflexões são trespassadas por referências a Fernando Pessoa e Drummond, por exemplo. Não é pouca coisa.

Há, então, em “serão as rosas vermelhas no escuro?” uma unidade, um objetivo literário que não gera panfleto, mas sim reflexão. Afinal de contas, o que serão as rosas vermelhas no escuro? Continuarão vermelhas ou é necessário lançar sobre elas a luz de nossas interpretações, a luz de nossa autonomia como leitor, a luz da Arte?

Termino aqui com um verso-provocação do Gustavo:

 

(…)

o nome do homem é o homem

do nome é o homem o nome

é o nome o homem do homem

o nome é o nome do nome do homem

na pedra de ecrã rabisco

que todo homem sozinho

carrega em sua voz

uma multidão

 

“Que todo homem sozinho carrega em sua voz uma multidão”. Porra, Gustavo! Vamos tomar uma cerveja? Vamos modificar o mundo?

 

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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