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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº03 – Set./2022 – Artigos & Ensaios – “O experimento gótico e alegórico no conto “O ladrão”, de Graciliano Ramos” – Erick Bernardes

ISSN: 2764.3751

O experimento gótico e alegórico no conto “O ladrão”, de Graciliano Ramos
Erick Bernardes

Este ensaio propõe uma abordagem acerca dos elementos alegóricos e de traços do góticos no conto “O ladrão” (2012), de Graciliano Ramos. Toma-se como base a compreensão da alegoria como elemento figurativo de contraposição ao símbolo, ressaltando no texto o viés satírico visto como posicionamento intelectual do autor e menos um engajamento de cunho retórico-político. Um breve contexto de desconstrução simbólica cristã serve de exemplo para evidenciar as variadas facetas que o discurso alegórico é capaz de assumir, sem deixar de mencionar a obra considerada fundadora do gótico literário, O castelo de Otranto, de Horace Walpole.

Antes da análise do conto “O ladrão” (2012), importa situar o termo Gótico para localizar a pertinência dessa abordagem em Ramos. Sabe-se que, além de categorizar diversas vertentes estéticas, na arte ou na arquitetura, o Gótico influenciou comportamentos e ditou modas. Essas tendências estéticas sustentava-se por uma Idade Média idealizada e seus aspectos tenebrosos e sombrios, pautados em temas sobrenaturais e/ou obscuros. Por outro lado, esse fascínio pelo horrível ou terrificante mesclava-se ao grotesco e abjeto de caráter alegórico. Em outras palavras, muitas das vezes, esses elementos considerados góticos diluíam-se tanto, ou imbricavam-se à outras tendências – via alegoria – que tornavam difíceis a definição sobre a que estilo as obras pertenciam, quer fossem nas artes plásticas ou nas artes da escrita. São questões que auxiliam o pesquisador na discussão acerca de possíveis traços góticos naquele que é considerado um dos primeiros textos curtos de ficção na obra de Graciliano Ramos, em início de carreira, no alvorecer do seu projeto poético.

O conto é datado de 1915 e só foi publicado, graças à organização da obra Garranchos, por Thiago Mio Salla (2012). Daí, antes da análise do texto propriamente dito, cabe aqui uma breve contextualização desta curta história de dor e insanidade coletiva que é “O ladrão”; aproximando o conto escrito pelo alagoano ao que ficou convencionalmente chamado de Gótico, especialmente à vertente que pensa a temática do medo, conforme Júlio França: “menos como um movimento artístico coerente, restrito a um local e a um momento histórico muito específicos, e muito mais como uma tendência do espírito moderno, que afetou profundamente os modos de pensar, de sentir e de expressar a arte na modernidade” (FRANÇA, s/d, p. 2).

Comparando algumas ideias que se entrecruzam na complexa rede de conceitos e tendências do Gótico na literatura, é notório que elas (não poucas vezes) retornam com força na ficção contemporânea por meio da alegoria. Atribui-se a este curto texto de Graciliano Ramos a alcunha de contemporâneo, considerando a data de publicação, em 2012, e tendo em vista que é o olhar interlocutor que denota o caráter de agora à interpretação. Vale ressaltar que embora a história de “O ladrão” tenha sido escrita de forma simples, em decorrência das muitas orações coordenadas, a tessitura do enredo é apresentada majoritariamente sob duas perspectivas basilares, a saber: o jogo de luz e sombra, semelhante aos traçados de matiz barroca, evocando assim a dúvida, por nuances de horror. Já em segunda perspectiva, há decerto um olhar mais “realista”, porém, que assume o viés trágico e angustiante, imerso no cotidiano noturno de uma comunidade não nomeada. Dessa maneira, quando se pensa conforme a distinção de Ann Radcliffe (“On the Supernatural in Poetry”), entre Horror e Terror, não será forçoso afirmar que há no conto “O ladrão” essas duas marcas peculiares ao Gótico. Ademais, o elemento “horror” conduziria a narrativa de Ramos para as dores físicas, sofridas pelo contato com sensível fisiológico. Já o terror, diversamente, visaria a tortura psicológica, sob a prevalência do abalo sentimental das emoções psíquicas. Embora a estética gótica seja de difícil delimitação, cumpre ao pesquisador apontar três quesitos ligados à definição do Gótico: o horror, o terror e a alegoria, corroborando, portanto, a proposta de ressaltar a presença de elementos que compõem uma estrutura ficcional no jovem Graciliano Ramos, e que corteja o obscuro, o suspense, medo.

Ao pretender uma abordagem descritiva do conto “O ladrão”, em busca de traços góticos na sua arquitetura textual, inegavelmente, importa ao investigador fazer jus a autores do contexto literário brasileiro, como Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Coelho Neto, dentre outros, mencionando pelo menos alguns nomes por suas importantes contribuições para a literatura de horror ou terror. Ressalta-se que não caberia aqui incluir as obras desses ícones da ficção nacional com fins de pesquisa, mesmo sabendo que suas estilísticas muito se aproximam do que se convencionou chamar “literatura gótica”, embora não seja um consenso categorizá-los como ficcionistas deste gênero literário.

Sendo assim, polêmicas conceituais à parte, o método de análise escolhido toma como alvo aqueles elementos que concorrem para a configuração do enredo lúgubre de “O ladrão” (2012), a saber, o sombrio, o melancólico, enfim, o infame:

Estávamos em junho. Fazia muito frio. Era tudo escuro. Chuviscos caprichosos esvoaçavam no ar, espalhando-se em todas as direções, levados por um vento inconstante e mal-humorado. Na rua estreita, tortuosa, estendia-se um lençol de lama revolvida, atoladiça, vagamente espumosa (RAMOS, 2012, p. 40).

Como se vê, essa descrição do sinistro, mais se assemelha a um quadro pintado sob o matiz cinzento, como metáfora da hipocrisia humana, do que propriamente a um contexto fantasmagórico ou sobrenatural, com vistas a direcionar olhar do narratário, principalmente em direção ao ambiente sombrio em que a ação se desenvolve. Ademais, o preenchimento da malha textual, por vezes, carrega uma simbologia moderna, à época – a luz, os trilhos, a estrada de ferro –, trazendo à enunciação elementos do precário progresso, que se assemelha ao tédio: “Perto da estação da estrada de ferro, a luz de uma grande lanterna feria as duas longas linhas de trilhos claros, brilhantes, semelhando serpentes adormecidas. O rumor monótono do rio cheio convidava a dormir” (RAMOS, 2012, p. 40).

Notadamente, essa referência ao ambiente inebriante, mas, ao mesmo tempo, contraposto aos símbolos da modernidade, serve para ressaltar o jogo de luz e sombra que incide sobre a obra experimental/inicial de Ramos e corroborar a proposta de aproximar “O ladrão”, escrito no início do século XX, das narrativas com elementos considerados góticos. Reforçando, o foco de atenção baseados na alegoria e, mais especificamente, na desconstrução da simbologia cristã. Porém, ao fazê-lo, considera-se, acima de tudo, a literatura contemporânea como um projeto inacabado, que se relaciona dialeticamente com o contexto sóciocultural no qual está inserido.

Sendo assim, se na visão moderna acima referida acerca da alegoria, parafraseando Walter Benjamin, evidencia contrastes entre “a poesia com a antipoesia, a harmonia com a desarmonia” (1984, p. 151), decerto crescerá em importância a leitura da alegoria como desconstrução do símbolo. Pode-se afirmar, portanto, em “O ladrão” (2012), que a desconstrução do mecanismo simbólico religioso só se realiza pela associação com a narrativa cristã da Viacrucis, e com o enredo pautado na inconsequência coletiva do pré-julgamento estruturado sobre um jogo de luz e sombra, tendo como pano de fundo a perversidade e a hipocrisia do coletivo social, como representação moderna da tradição judaico-cristã.

E, à luz dos brandões e das velas, lá fomos em procissão, fazendo uma algazarra doida. Éramos uns vinte. Marchávamos com precaução, meio cegos pelo clarão das tochas. Estávamos encharcados. De vez em quando uma perna mergulhava no atoleiro da lama nauseabunda, pegajosa, macia como veludo. Às vezes, encadeados como morcegos, procurávamos evitar o lamaçal saltando para cima de uma coisa branca que, vista a distância, parecia uma pedra, e era uma poça de água. Um exaltado perdeu a paciência e saiu correndo, a acordar o comissário de polícia e o carcereiro. Nós continuamos a arrastar-nos com lentidão, conduzindo o homem (RAMOS, 2012, p. 46).

Tal artifício figurativo acontece quando o personagem não nomeado, o “suposto” ladrão, é preso pelos cidadãos “de bem” e é posteriormente espancado, enquanto o obrigavam a caminhar até o cárcere: espaço fechado, claustrofóbico e sombrio no qual o desconhecido acabará morto, em posição similar ao Cristo Crucificado. Nesse sentido a figuração no conto de Ramos, enquanto elemento do gótico, se revela: “como uma faceta da natureza humana, que permearia várias manifestações da cultura” (FRANÇA, s/d, p. 2). Com efeito, a discussão acerca da história do sujeito agredido e oprimido, sem julgamento sequer, mostra tal artifício enunciativo como uma maneira de reflexão para tentar compreender o mundo contemporâneo, não sendo, enfim, exagero considerar toda essa obscuridade escrita em 1915 como um modo de antecipação ou modus operandi na poética de Graciliano Ramos (BERNARDES, 2014, p. 68).

O leitor talvez relacione esse aspecto da representação alegórica ao carnaval e/ou alguma outra festa popular. No entanto, a alegoria carnavalesca enquanto recurso de construção textual não se reduz apenas às manifestações festivas mundo afora, tampouco à compreensão acadêmica enquanto figura de estilo ou recurso de linguagem. Porém, há de se ressaltar, que a “carnavalização” costuma ir além, isto é, ela procura vincular a noção figurativa no discurso à representação artística dos acontecimentos do nosso cotidiano. Nesse contexto, a alegoria, como quer Mikhail Bakhtin (2010, p. 139), estaria não só ligada aos princípios das festas populares mais diversificadas, mas a uma necessidade humana de comunicação.

Além disso, criaram-se com esse tipo de linguagem, alcunhada pelo pensador russo de “concreto-sensorial”, certas estratégias argumentativas desenvolvidas para provocar o asco, o medo, enfim, a ojeriza, com vistas à literatura voltada para a temática das sombras. E, nesse aspecto sombrio, o narrador de Graciliano Ramos, em “O ladrão” (2012), mostra disposição macabra relevante ao narrar a tentativa de fuga do infame desconhecido:

Num momento em que julgou a nossa atenção distraída, (o homem) deu um salto e foi cair em meio da rua. Lá tentou formar carreira. Não pôde. Estava preso, mergulhado quase até a cintura naquele lodaçal negro, viscoso, coberto de espuma avermelhada como uma baba sangrenta. Quanto mais se esforçava para sair, mais se afundava. E do atoleiro vinha um glu-glu semelhante ao rumor que alguém faz quando quer engolir qualquer coisa sem poder, e à superfície subiam sempre aquelas bolhas redondas, avermelhadas, como uns grandes olhos que estivessem assistindo aos esforços do desgraçado, impassíveis, zombeteiros. Eu já estava ao lado dele, meio enterrado até a lama também, com um revolver entre os dedos inteiriçados. O comerciante, junto a mim, brandia a barra de ferro, pronto a arremessá-la (RAMOS, 2012, p. 43-44).

Sendo assim, ao pensar a linguagem, a partir dos fenômenos mais evidentes do discurso carnavalizado (não só na comicidade, mas principalmente nos quesitos horror ou medonho), Mikhail Bakhtin vai construir a sua “Teoria da Carnavalização”, pois se já havia o fenômeno proveniente dos rituais e festas populares, chegara a hora então de ele conceituar a coisa em si. Soma-se a isso, o fato de que toda a tendência de misturar o asqueroso ao atrativo, o sagrado ao profano, ou o grotesco ao sublime, pensada pelo escritor russo (2010), mune o estudioso literário de um instrumental teórico que enxerga a alegoria carnavalesca como importante elemento constitutivo da literatura considerada gótica.

Com tudo isso, aqueles elementos contrastivos (alto e baixo, sublime e grotesco) derivados das manifestações folclóricas das festas pagãs vêm ao encontro da abordagem pretendida em “O ladrão”. Pois, essa mescla do elevado com o grotesco, referidos por Bakhtin (2010), percebida também na linguagem literária de Ramos, concorreria muitíssimo para a caracterização da obra de matiz gótica, que é a proposta desta apresentação. Ressalta-se, no entanto, que muito do que se convencionou chamar de gótico se deve às relações conflitantes dos seus personagens, ou seja, ao não desvelamento imediato das suas ações. Conflitos estes que levariam o leitor desconfiado a questionar: um homem deveria ser espancado até a morte? O personagem estranho poderia ser preso pelos que nem bem sabiam se o acusado de ladroagem iria realmente roubar algo?

São mais perguntas do que respostas o que se tem em mãos, mas é a partir dessas indagações, via alegoria, que o gótico se mostra contemporâneo, quer seja pelo horror e/ou terror dos monstros interiores suscetível ao humano, quer pela denúncia à hipocrisia social, tão à mostra atualmente. Logo, compreendemos que o conto “O ladrão” apresenta uma mistura de sentidos os quais suscitam reflexões e evocam a intertextualidade, semelhante à carnavalização defendida por Mikhail Bakhtin, a saber, antigo versus novo, tradição versus modernidade, morte e vida, paganismo e cristianismo, dentre outros.

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Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Problemas da poética de Dostoievski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FRANÇA, Júlio. As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas. Disponível:www.academia.edu/11773782/As_sombras_do_real_a_vis%C3%A3o_de_mundo_g%C3%B3tica_e_as_po%C3%A9ticas_realistas Acesso em: 22 de janeiro de 2017.

HOGLE, Jerrold E. The Cambridge companion to gothic fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

RAMOS, Graciliano. O ladrão. In: Garranchos. Organização Thiago Mio Salla. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 40-52.

RODRIGUES, Adriano Duarte. Modernidade. In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de termos literários. Disponível em: <http://edtl.fcsh.unl.pt> Acesso em: 18 de jan. 2017.

WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

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