João Rodrigues

As aventuras e desventuras de um sonhador – Parte II: O sonho

As galinhas já haviam descido do poleiro fazia tempo. E eu ainda dormindo! Mas estava de férias e era final de semana. Sendo assim, podia. Se fosse na semana, jamais!

Finalmente saltei da rede, escovei os dentes e fui tomar o café que a mãe tinha deixado esquentando na trempe do fogão a lenha. Ela já trabalhava desde as cinco da manhã no seu trabalho “invisível”. Papai tinha ido pra feira.

– Mãe, a professora disse que ano que vem vou ter que estudar na rua – falei, enquanto tomava mais um gole de café quase pelando a língua.

– Por quê?

– É que aqui não tem professora pra 4ª série – respondi entre a tristeza e a ansiedade. Na verdade, ao mesmo tempo que eu receava ir estudar na cidade, também tinha vontade. “Estudar na rua” era o sonho de muito menino. Ir pra escola de carro com um monte de gente, andar na rua todo dia, conhecer pessoas diferentes… Era coisa pra gente grande. E toda gente miúda quer ser grande, embora depois queira ser pequena de novo.

– Hum… – limitou-se a responder.

– E agora, o que a gente faz? – perguntei após um longo silêncio.

Ela ficou lá, calada por um tempo enquanto temperava uma panela. Depois disse:

– Como é que um menino pequeno desse jeito vai estudar na rua?

– Vou no carro dos alunos com os outros.

Se não me engano, naquele tempo o carro dos alunos era uma picape C-10.

– Mas tu é muito pequeno.

– Sou nada, mãe.

Eu queria estudar. Fosse onde fosse. E, naquela época, estudar nem sempre era opção. Havia todo tipo de dificuldade. Às vezes não tinha transporte, o inverno destruía as estradas, a prefeitura nem sempre disponibilizava carro para alunos… outras vezes era porque a gente precisava trabalhar mesmo.

Não sei como, mas consegui me matricular na tal escola. O início das aulas foi se aproximando.

– Mãe, estudar na rua é diferente – disse, tentando encontrar uma maneira de falar sobre o material escolar.

Naquela época eu não tinha os cadernos que temos hoje. Na maioria das vezes eram feitos de papel almaço, que minha própria mãe fazia. Ela pegava as folhas de papel, dobrava e costurava. Pronto, estava feito o caderno. Caderno de arame era um luxo! Lápis e borracha, usávamos até o fim, literalmente. Caneta? Outra preciosidade. Mochila? Eu nem conhecia. Enfim, estudar era um verdadeiro desafio! Sem contar que nossas professoras das séries iniciais (no interior) eram pessoas de pouco conhecimento acadêmico também. Afinal, democratizar o estudo nem sempre foi prioridade nesse país.

Minha mãe amassou mais um dente de alho, misturou com sal e jogou na panela. Depois, passou as mãos na barra da saia e perguntou:

– Diferente de que jeito?

Ela não sabe ler. Se foi difícil pra mim, imagina pra ela naquele tempo. Então era mais do que normal que não entendesse esse “é diferente”.

– Precisa de caderno de matéria. Caderno de verdade. Canetas, lápis, apontador, borracha, régua, colecionador… – respondi.

Ela passeou pela cozinha, como se avaliasse a situação.

– E precisa de tudo isso? – perguntou, assustada.

Fiquei em silêncio. Meu sonho de continuar estudando me parecia a um passo do fim.

 

Créditos da Imagem:  https://pixabay.com/pt/illustrations/material-escolar-escola-papelaria-5180367/

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João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

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