Cristiano Fretta

É impossível escrever sobre fome.

Porque essa palavra – fome – não passa de uma tentativa de expressarmos em quatro letras a sensação física e também psicológica de se necessitar de alimento. Toda escrita é um ato de tradução em que se tenta dar forma gráfica e sonora às mais diversas gamas de sensações e pensamentos. Em outras palavras, toda escrita é naturalmente um processo de escolha em que se busca uma forma que seja capaz de carregar sentido dentro de um sistema comunicativo, partindo do princípio de que o interlocutor tenha conhecimento prévio da língua e assim consiga compreender o objeto da nossa comunicação. É dessa maneira que toda linguagem é, antes de tudo, forma e a ela está presa. As palavras fazem frete. Evoco aqui o exemplo limite de Primo Levi e suas memórias de Auschwitz em seu arrebatador É isto um homem?:

Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominação específica. Dizemos ´fome´, dizemos ´cansaço´, ´medo´ e ´dor´, dizemos ´inverno´, mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega.

Toda linguagem é evocação, mas nunca a coisa em si. Ceci n´est pas une pipe. E não: isto não é bem uma crônica sobre a fome. Este texto é algo sobre a fome. Como diria Alberto Caeiro, heterônimo do mestre Fernando Pessoa:

 Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

  Enquanto escrevo estas linhas, tomo um café forte e belisco uns biscoitinhos de queijo. Também tenho a plena certeza de que quase ninguém que me lerá tem qualquer tipo de dificuldade alimentar. Outro motivo para repetir: esta não uma crônica sobre fome.

Sempre que se fala sobre fome, incorre-se sobre o óbvio: todos devem comer, na medida em que a alimentação é a base da vida humana; apenas uma pessoa bem alimentada consegue desempenhar com proficiência as suas funções físicas e intelectuais. Além disso, sempre é importante se ter em mente que, em nível global, não há escassez de alimentos, mas sim má distribuição. As causas da fome podem ser as mais diversas possíveis, que vão desde instabilidade política, má administração de recursos naturais até, claro, recessões econômicas. Segundo o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo”, lançado em 2021 pela Organização pelas Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), um décimo da população mundial está subnutrida, 149 milhões de crianças sofrem de nanismo por má alimentação e quase um terço das mulheres em idade reprodutiva sofrem de anemia no planeta.

No caso do Brasil, a falta de estratégias em relação ao enfrentamento das consequências econômicas da pandemia empurrou boa parte da população brasileira a uma situação de miséria. Segundo relatório da Oxfam Brasil, publicado em julho de 2021, o percentual de pessoas que vive na extrema pobreza quase triplicou desde o início da crise sanitária provocada pela epidemia de coronavírus, passando de 4,5% para 12,8% da população brasileira. Infelizmente é possível que agora, enquanto escrevo estas linhas, em janeiro de 2022, este número seja bem superior a isso. No final do ano passado, imagens de restos de comidas sendo vendidos em supermercados e pessoas amontoadas em caminhões de lixo vêm aparecendo de forma relativamente corriqueira em redes sociais e demonstram a total falência da política econômica atual no que se refere a dar dignidade alimentar mínima aos brasileiros mais necessitados e também a impedir que outras parcelas da sociedade sejam empurradas em direção a tal barbárie humanitária.

Alimentar-se é ingerir o mundo, engravidar-se dessa essência visceral que é prover energia e também prazer sensorial a si próprio. Mas alimentar-se, acima de tudo, também é rejuntar a parede oca do estômago com a argamassa viscosa que cobre as manchas mais dolorosas da fome, este apertar na barriga que às vezes é barulho, mas também pode ser olhos cobiçosos e boca enxarcada frente aos vidros de uma padaria em uma cidade qualquer. A capacidade de combater a fome ao longo de milhares – na verdade milhões de anos – é uma das provas de que a nossa espécie verdadeiramente ganhou a luta evolutiva. A fome é uma condição natural de ser humano. E não precisar ficar horas procurando alimentação é uma conquista importantíssima em nossa evolução cultural. Dessa forma, somos mais humanos quanto menos famintos estivermos. Além disso, a fome está associada à rendição: ela desfaz vínculos, faz com que percamos todo o nosso orgulho e nos submetamos a qualquer tipo de humilhação quando a necessidade física de se alimentar se sobrepõe à razão humana.

A verdade, no entanto, sempre parece residir nas palavras do mestre Alberto Caeiro:

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.

É possível completar:

 A fome é fome.

 Enquanto isso, alimentemos aqueles que podemos alimentar. Palavras alimentam o cérebro, mas não enchem barriga. São necessárias ações práticas, como distribuição de alimentos e, principalmente, eleição de líderes com o mínimo de empatia para com a população mais carente deste já tão sofrido Brasil.

Fonte imagem: https://pixabay.com/pt/photos/homem-sem-teto-pobreza-sem-teto-1550501/

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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