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Você, Escritor! – Poema: “DURAÇÃO DO TEMPO” – José Félix, natural de Luanda, Angola

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DURAÇÃO DO TEMPO
[ou uma construção ideológica da linguagem]

O meu local de duração
é a memória interdita
O tempo dura, amor
o desejo e o sonho perduram
mesmo que o ódio e o desprezo
tenham a permanência da vida
O amor é a duração do poema
o tamanho de uma frase
o próprio pensamento tem a duração de um tiro
de um trovão, de um desastre de automóvel
de uma luta de galos
do voo de um pássaro
e a dor continua inteira da vida
A duração da dor
da dor construída e da dor imposta
Que duração tem cada dor?
Quanto mais tempo dura o tempo
da desventura
mais o tempo dura;
seja o amor, o ódio, o desprezo
do próprio e dos outros
porque a duração
é o sentimento da vida
do sonho , da ilusão
Dura, dura a armadura, a parede
a armadura que exila, que reclusa
a memória na duração do tempo
e entre a imagem que se transforma
no passar dos anos
como se vivêssemos o tempo
no tempo da metamorfose
que concede à viagem o sentido do sentimento.
A duração é a permanência da infância
que se alonga
até a haste da árvore se quebrar
e corromper outra duração
e mais outra duração
na continuação do poema
e transfiguração do sentimento

na polissemia da dor e da reclusão
o exílio impostamente construído
na vértebra dos caídos
O poema leva a morte e dura na vida
no desejo de uma ou de outra
como quando coloco as mãos em cruz como os cristãos
e desejo ardentemente a morte
A morte ou a vida?
Talvez ambas
na itinerância do caminho.
No descanso do poema
a palavra segue o caminho
na música de Willie Dixon “I’m your Houchie Couchie Man”
e na tempestade
que isola os melros por entre a folhagem dos plátanos.
São pontos negros, código
para as almas imprecisas
“Go Easy” Willie, deixa fluir o trompete
e descobre esta dor de livros
de leitura, de gritos, de versos.
Prendo o olhar admirado nas plantas
a roseira, a camélia, as orquídeas
e as plantas sem flores arrecadadas a um canto
das quais não sei, sequer, o nome
a memória trá-las por causa da alegria
e alguma dor entretecida no tempo.
As flores também envelhecem
ao contrário da memória que dura
na enciclopédia do tempo.
É como as viagens que fazemos, amor.
Vamos para Gent, e no Kouter
pisamos as pedras e lembramo-nos da calçada à portuguesa
e dos operários que partem as pedras de basalto
de cócoras e dores de rins vão construindo
ex libris por aí e por todo o lado
com a pobreza nos bolsos.
Os barcos nos canais são viagens
são tormentas são caravelas e naus que partiram de Belém
e trouxeram alegria e luto para quem ficou
sem fazenda, ouro, pimenta.
São nomes que navegamos
que navegamos nos nomes.
Se um poema pode esquecer os nomes
também nos lembra nos verbos interditos
o nome os nossos nomes
a consciência de nós próprios.

Quando te chamo acordas as manhãs
e abres as janelas do espanto;
tudo que está no oblívio pende dos parapeitos
cravos, cardos da memória
e heras suspensas do tempo
na navegação constante de marinhagem
onde subo para a gávea da loucura
pelos enfrechates o sonho solto
nos ovéns e enxárcias sobre a água: o abismo líquido
que submerge o buraco, o interstício que guarda e amedronta
o silêncio natural.
Com aracnídea paciência espero a musa
essa mosca persistente que zumbe no ouvido
no cérebro e pesa nos ombros
e dá a leveza necessária
para que o tempo dure
e o poema siga pelas veredas e caminhos
e perde-se em Cnossos.
Espera Ariadne, a espada e o fio
a frase feita, refeita a duração do texto
no papel quadriculado em que escrevo
prisioneiro da grade da escrita
iluminado por pirilampos, arrepios de linguagem
relâmpagos de angústia da perda.
A perda tem a duração da existência
por mais reboco que se coloque na parede
sente-se a presença dessa dor disciplinada
construída com a criação da memória
a teia que nos prende à civitas.
Somos sempre escravos
sem campos de algodão.
O meu inventário não tem morada
nem permanece nas estações vadias
vai por esses campos de girassóis floridos
sugados por abelhas que constroem o tempo
sobre o meu tempo
e não sei dizer se o tempo dura
ou se olho as abelhas a sugar o pólen
fico com a noção da temporalidade imperfeita.
O que é o tempo para uma abelha?
O que é o tempo para mim
se não o ócio, actividade lúdica
a simples arte de observar quem observa
como um viajante que passa pela primeira vez
e quer gravar com película fotográfica um momento.
Quanto dura esse momento?
Será vivido de cada vez que olhar a fotografia
ou criamos um tempo diferente a cada olhar?
Quando visito o centro de Ghent

crio um novo parágrafo a olhar o rio
as mulheres jovens da cidade, os estudantes
a igreja de Sint Niklaas, o castelo de Gravesteen
o Museum voor Schone kunsten com quadros de Jerónimus Bosch
o tríptico de Gent na igreja de Sint Baafs
São tempos diferentes. São durações diferentes.
Há melros e gralhas e pombos torcazes
Mas estão em sítios diferentes
Que voam para direcções diversas.
Os waffles!Os waffles têm outro gosto.
Volto sempre ao ponto de partida
ou será o ponto de chegada
ao sonho à ilusão ao desejo
ao são que o exílio permite
e que não permite afastar nem que seja por pequenas
intermitências do tempo de uma duração
como saborear um vinho
e nos dias em que o coração é um trovão incontrolável
ter a representação do sabor do vinho
sem tê-lo ou vê-lo
só o sentido visionário de um texto
de uma frase, de uma palavra acesa a queimar
os olhos e a língua.
O amor! O amor é a precisão da memória
É o exercício constante da duração do tempo
O amor é o propósito consciente de um fogo reacendido
— roble rubro que aquece, queima, acende e sossega.
Tínhamos uma casa à beira- mar com
Macieiras-da-india, tambarindos, gajageiras e rosas-de-porcelana.
Hoje, ainda, sinto o tam tam a estremecer o corpo ao som da gonga
do quissange e da marimba que já existiam quando nasci
e continuarão a existir e a durar
quando o pó se atravessar no caminho
no canto das Kiandas e na revolta da Calema.
As andorinhas! As andorinhas são a duração do tempo
vestidas de gabardine todos os marços
diferentes todos os anos que nos trazem traços chineses
no espaço preenchido de restos de tempo
e gaivotas perdidas no areal da praia
e nas rodovias rodeadas de aterros.
Os barcos-casas do rio Leie
podiam ser o meu tempo e a minha duração
diferente da duração imprecisa
de uma morada permanente que por sê-la
com a duração, o sossego do tempo
que marca, que dói na mesma grandeza espelhada nos olhos

na vastidão do cérebro.
De costas voltadas para o mar há
outro espaço com o marulhar das ondas
e no declive da falésia
a duração do tempo é um clique de um suicídio
não premeditado.
Quem não viu ou só ouviu ou leu
cria a duração espacial na discussão da morte e da vida.
Cada um constrói a duração de um facto
uma duração individual, egoísta
um castigo persistente que a memória virulenta, contagiosa,
transforma em pústula
ou numa mentira melancólica, nostálgica, uma pobre alegria.
O que posso dizer de ti, amor
se não dar continuidade ao gesto, aos gestos
do primeiro encantamento e fazê-los duráveis
sem permanência na duração do tempo.
De tudo em ti em mim perdura
permanece na velhice jovem da memória
esta duração que parece entorpecida
e vive com o tempo maduro
um fruto que nasce na árvore
e o sabor que fica no palato.
Não! Não é uma lembrança
é um coágulo de sangue que fica preso
à pele, seco, fere se o tirarmos
_ a alegria e a dor são duas durações que se completam
porque uma não vive sem a outra
a alegria de partir e a dor da permanência
Caminho amando pelo Zuidparklaan
e, apesar disso, trauteio Jacques Brel
crio uma duração intemporal
ao admirar as flores de estação
e de mãos dadas peso uma espécie de eternidade
sabendo que daqui a dez ou quinze minutos
tudo vai para outra duração
enquanto os rapazes treinam números de circo
entre as árvores
e as jovens quase se desnudam sobre a erva húmida.
Amanhã não estão no parque as cordas de circo
os rapazes e as raparigas ao sol quase desnudas
e só a memória fará a duração desse tempo
que a escrita, subliminarmente, torce, distorce
para tudo regressar ao limbo
O limbo da infância
nos dias de chuva forte

traz o cheiro da terra molhada
em volta da cerca de aduelas
pintadas de piteiras cravejadas de tabaios suculentos
Traz-me a casa uterina
o cheiro adocicado das pitangas
para outra casa onde estou mas não vivo
porque nesta casa está a minha outra casa
com a permanência das paraedes
que dura no tempo, no exílio
de uma pátria reclusa da duração
e se sustenta dessa duração
apesar das fendas na navegação
e trabalho de calafate
_ navio em desassossego
que regressa à marinhagem
no sossego das marés.
Um dia regresso a casa
Os passos antigos doem
e a duração não envelhece, nem a memória
apesar de as avenidas e ruas estarem ali
sem ali estarem. Nem a casa
com o jardim e romãzeira
a garagem para o automóvel
os gritos da mãe a chamar-me para a merenda.
O tempo tem a duracao de um flash
A duração do bater do martelo na bigorna
ou do zumbido da abelha carniceira.
Uma casa expatriada
consumida na redução do tempo
para onde levo as paredes, a fala e a janela
a duração do tempo que não se perde.
Atravessei Paris desde o aeroporto de Orly
Até ao aeroporto Charles de Gaulle
a caminho de Frankfurt, em 1978
e vi-me a atravessar a savana do leste de Angola
e 42 anos depois lembro-me que senti
na travessia o cheiro de dendém
e da farinha de mandioca tal e qual como hoje.
Debaixo dos pés a minha pátria consome
a minha duração do tempo
na construção de viagens homéricas
acompanhado da feiticeira Circe, Calíope, Ciclope
e hoje, amanhã e depois
por mais de 10 anos
procurarei Penélope reclusa do sonho.
O que dura é onde eu estou

e o momento, só o momento perpetua no tempo
o acontecimento e a minha forma
de duração do tempo
o conhecimento das viagens em movimento
essa construção inteligível
que se cria através das palavras, das frases.
O lugar, os lugares que me pertencem
e que me separam
e entre o que me pertence e o que me separa
uma clareira de duração no tempo
aqui perto dos abetos e dos plátanos
dos ciprestes, e dos mortos, de todos os mortos
que passaram pelos outros, que passam por mim
e passarão depois de mim.
Há um tempo que me prende e me prolonga
nos lugares situados no poema
palavras que criam a duração, tempos vários.
Viajo passageiro
a ler premonições em Rough and Rowdy Ways
com a duração da nostalgia
do outro tempo com a duração
que ultrapassa fronteiras e memórias que vão e vêm
como as correntes marítimas
que trazem os peixes navegantes para a barra e regressam
para o alto mar.
A intersecção do futuro com o passado
um passado futurista da saudade
O tempo é de mim, de ti
anciãos de olhar jovem a perscrutar as perguntas
que serão feitas amanhã
uma diluição da duração do tempo
que forma ideologicamente
transformado no fio e na espada
do cutelo premonitório.
E eu o que sou se não a metamorfose da duração do tempo
passado, presente e futuro
memórias, asas de pássaros
no emaranhado de sombras
__ a mão que sobrevive no gesto alucinado de uma morte
é a mesma que dá à tua ausência
o sentido de estar perto
na paisagem íntima do olhar
deposto pelo punhal da traição.
O tempo? O tempo não existe!
É uma construção ideológica da memória corrompida
pela saudade.

José Félix
Natural de Luanda, Angola

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Redação

A Revista "Entre Poetas & Poesias" surgiu para divulgar a arte e a cultura em São Gonçalo e Região. Um projeto criado e coordenado pelo professor Renato Cardoso, que junto a 26 colunistas, irá proporcionar um espaço agradável de pura arte. Contatos WhatsApp: (21) 994736353 Facebook: facebook.com/revistaentrepoetasepoesias Email: revistaentrepoetasepoesias@gmail.com.br

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