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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº03 – Set./2022 – Artigos & Ensaios: “Essa gente, de Chico Buarque: Alguns apontamentos” – Juliane de Sousa Elesbão

ISSN: 2764.3751

ESSA GENTE, DE CHICO BUARQUE: ALGUNS APONTAMENTOS
Juliane de Sousa Elesbão

Este ensaio concentra-se na obra Essa gente (2019), do cantor, compositor e escritor Chico Buarque. O enredo dessa espécie de tragicomédia gira em torno da vida decadente de um escritor chamado Manuel Duarte, cuja sonoridade já nos remete ao compositor de A banda. Isso poderia nos levar a crer que o romance trata de uma autobiografia, mas, apesar da presença de pontos de contato entre vida e obra, não é o que nos interessa abordar aqui.

Em Essa gente testemunhamos a situação crítica vivida por Manuel Duarte, um escritor best-seller outrora aclamado pela publicação de um romance histórico intitulado O eunuco do paço real. Depois de gastar os vários adiantamentos que a editora lhe enviara correspondentes a um livro que ele estaria a escrever – ou deveria estar –, mas sem muito sucesso, o escritor vê-se perdido com uma espécie de bloqueio criativo, que o impede de dar sequência ao empreendimento literário tão esperado. Temos aí a obra num processo de devir. Além dessa angústia, o protagonista ainda precisava lidar com as mulheres em sua vida: Maria Clara, ex-esposa, tradutora e intelectual, mãe de seu filho, que sofre bullying na escola por ser “filho de comunista”; Rosane, interessada em “arquitetura de interior”, com quem ficou após deixar Maria Clara, mas que estava envolvida com Nonato, um velho rico e sem escrúpulos; e Rebekka, uma garota holandesa que vivia no Vidigal junto com Agenor, salva-vidas no Leblon, e que atuava como voluntária lecionando inglês para as crianças da comunidade.

O que salta aos olhos à primeira vista é a forma como Chico delineou esse romance. Salientamos que esta designação “romance” ainda é um pouco problemática, especialmente na (pós)modernidade, devido aos vários processos de metamorfoseamento por que tem passado desde que surgiu enquanto gênero literário, entre os séculos XVII e XVIII, como derivado dos poemas narrativos épicos, cuja diferença reside, sobretudo, na estrutura formal e no ponto de interesse que cada gênero apresenta. Assim:

Ao considerarmos o romance e a épica, somos tentados a pensar que a diferença principal está na diferença entre verso e prosa, entre cantar algo e enunciar algo. Mas acho que há uma outra maior. A diferença está no fato de que o que importa na épica é o herói – um homem que é um modelo para todos os homens. Ao passo que a essência da maioria dos romances […] reside na aniquilação de um homem, na degeneração do caráter. (BORGES, 2001, p. 57)

E é isso que ocorre em Essa gente: um “romance” formado por fragmentos e que trata da degeneração humana aliada à também degeneração da cidade do Rio de Janeiro (inferida como um microcosmos do Brasil), onde está situado o enredo. Deparamos com cartas, bilhetes, ordem de despejo, páginas de diário, telefonemas, que entrecruzam fatos ocorridos entre os anos de 2016 e 2019, mas que não seguem uma ordem cronológica. Na verdade, a priori, essa miscelânea de gêneros dentro do romance aparenta certo desordenamento que, de alguma forma, acentua a desordem na vida de Manuel Duarte. Assim, o leitor é obrigado a montar esse quebra-cabeça temporal e a intercambiar as situações trazidas pelo protagonista e seus interlocutores. O leitor torna-se uma espécie de bricoleur da narrativa. O tempo, então, vê-se problematizado, a corresponder com uma suposta atmosfera de liquidez que dá contorno à sociedade contemporânea, marcada pela aceleração no ritmo de vida, especialmente porque “as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir” (BAUMAN, 2009, p. 7).

Além disso, a referida exigência feita ao leitor, somada ao fato de o protagonista da obra ser um escritor, leva-nos a algumas reflexões sobre questões que transitam no entorno da literatura: a escrita, a inspiração, o bloqueio criativo, o mercado editorial, entre outras. Na obra, essas questões são apenas pontuadas, como podemos ver a seguir:

Não bastassem os perrengues pessoais, ficou difícil me dedicar a devaneios literários sem ser afetado pelos acontecimentos recentes no nosso país. (BUARQUE, 2019, p. 5)

Talvez pense que ensaio uma reconciliação, embora esteja cansada de saber que sou adepto de caminhadas peripatéticas, sobretudo nos dias em que sento para escrever e me sinto amarrado, com a vista saturada de letras. Desço à rua sempre que as letras endurecem no papel, comprimidas entre si como as pequenas pedras em preto e branco do calçamento que piso. (BUARQUE, 2019, p. 6)

A literatura, para mim, deveria ser unicamente fonte de deleite, pois às suas custas eu não teria como suprir sozinha as necessidades do meu filho […]. (BUARQUE, 2019, p. 12)

Nos quiosques de Ipanema em que parava para tomar um coco, cada tipo com quem me entretinha podia servir de inspiração para um futuro personagem; mesmo sujeitos que nunca abriram um livro podiam de repente entrar no meu. (BUARQUE, 2019, p. 25)

Tais lapsos metaliterários não são desenvolvidos no romance buarquiano, como já foi afirmado, mas destacam-se como princípio metaficcional na feitura textual para representar a crise da impossibilidade de se contar uma história e sobre em que medida a ficção influencia as nossas existências. Em Essa gente é-nos perceptível que o cotidiano se reinventa a cada instante como possibilidade de matéria literária, a ser ressimbolizado pela literatura e a dar-nos a chance de narrar quem somos. Por isso, parece-nos que livro que estamos a ler é justamente aquele que Duarte está a escrever ou, pelo menos, a tentar escrever.

O título da obra buarquiana também chama a atenção por remeter a aspectos brasileiros que não nos são estranhos: Essa gente somos todos nós; Essa gente é todo um embate de narrativas produzidas entre os polos sociais colocados como oposição e que salientam a fissura das desigualdades em nosso país; Essa gente é a gente do Brasil, entre outras gentes, com características peculiares. Sendo assim, vemo-nos confrontados com a nossa própria imagem, com aquilo que nos fere social e humanamente falando: a truculência policial, o falso moralismo, as tensões entre esquerda e direita, a relação nefasta entre políticos e latifundiários, o preconceito social e étnico mal disfarçado, a violência doméstica, a violência urbana, não somente praticada pelos mais marginalizados, mas também por quem tem dinheiro, por quem pertence à classe alta, como na cena em que Fúlvio, amigo de Duarte, ao sair do Country Club, destila seu ódio em um morador de rua com feições indígenas, como podemos ver a seguir:

Ele [Fúlvio] já está para embicar na rua quando freia, salta do carro e vem berrando na minha direção: cai fora, vagabundo!, fora daqui, maconheiro! Com uma expressão transtornada, passa por mim às cegas e se dirige a um homem deitado na calçada, encostado no muro do clube. É um sujeito com cara de índio velho que se levanta com dificuldade, depois de tomar uns chutes na costela. Sai caminhando meio cambaleante, seguido pelo Fúlvio, que ameaça chamar a polícia se ele não sumir de vista. Ao esboçar uma corrida, o índio derrapa e se escora no muro, de onde é arrancado pelo Fúlvio com um safanão que por pouco não o arremessa no asfalto. […] [Fúlvio] acerta-lhe uns pontapés nos rins, e depois de um chute nas fuças deixa o homem estatelado e arquejante no meio da calçada. (BUARQUE, 2019, p. 47-48)

Logo, observamos uma diretriz sociopolítica atenta ao contexto atual em que o país se encontra, que também dá o tom à narrativa e que se encaminha conforme se degrada pessoal e profissionalmente o protagonista. Longe de um panfletarismo engajado regado a um retoricismo que busque efeitos políticos, o romance de Chico faz a ponte entre o seu romance e a realidade política brasileira para  mostrar o quão esta interfere no dia a dia da população, acentuando nesse âmbito as divergências, a mostrar as facetas dos problemas nacionais, cujas raízes estão localizadas na história colonial do país e que se mantêm ainda fincadas na estrutura social que nos sustenta atualmente.

Contudo a postura política que a obra assume não se sobrepõe ao literário; na verdade, ela se comporta como um elemento da própria construção da obra. Identificamos citados na tessitura de Essa gente alguns acontecimentos verídicos que estamparam manchetes de jornais brasileiros – como o caso do músico que foi morto após seu carro ter sido fuzilado com 80 tiros pelo exército; a existência de grupos que defendem a tese de que a terra é plana, o interesse político pela liberação e pelo comércio de armas, entre outros –, usados como elemento literário para mostrar que, assim como o país, as relações sociais e amorosas de Duarte também se encontravam afetadas por essa violência simbólica que atinge a todas as ordens da existência humana: emocional, intelectual, social. Ademais, assim como o país, o protagonista possui uma personalidade marcada por contradições e falhas morais, sem muitas perspectivas, o que acaba por justificar o fim trágico que ele teve. Dessa maneira, o elemento sociopolítico é tomado “como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada” (CANDIDO, 2000, p. 8).

Sem muito aprofundamento, destacamos que Essa gente aparenta ser ainda uma extensão de uma das faixas do CD Caravanas, do mesmo autor, lançado em 2017. Na canção “As caravanas”, uma das faixas do referido álbum, notamos um olhar para a relação centro-periferia ambientado num dia de sol em uma praia da zona sul carioca, aonde vão as várias caravanas suburbanas: “do Arará – do Cachangá, da Chatuba… A caravana do Irajá, o comboio da Penha”, “suburbanos tipo mulçumanos do Jacarezinho”, “lá das quebradas da Maré” (BUARQUE, 2017). Vemos ainda escancaradas as marcas da escravidão e a violência do racismo, que toma como mote uma referência direta aos navios negreiros que para a América se dirigiam, “crioulos empilhados no porão de caravelas no alto mar”, para transplantar para a nossa realidade e para as terríveis consequências sociais que testemunhamos hoje: “Com negros torsos nus deixam em polvorosa a gente ordeira e virtuosa que apela pra polícia despachar de volta o populacho pra favela ou pra Benguela, ou pra Guiné” (BUARQUE, 2017). Assim, os negros suburbanos são tratados com a mão pesada da discriminação étnico-social, sendo temidos pela “gente ordeira e virtuosa” da área nobre que se incomoda com a presença do “populacho” em Copacabana.

Logo, podemos fazer um paralelo entre a faixa “As caravanas” e o romance Essa gente por esse ponto de contato: a relação centro-periferia, como já citado rapidamente. Na obra literária, poderíamos salientar a personagem Dr. Marilu Zabala, moradora do mesmo edifício de Manuel Duarte, localizado no Leblon. Numa determinada situação, ela se comporta como uma típica “gente ordeira e virtuosa” presente na canção referida anteriormente. Ao se incomodar com supostas prostitutas que saíam do apartamento de Duarte, Marilu reclamava que: “São mesmo profissionais do mais baixo estrato, e não o digo por suas fisionomias, pois sou juíza federal e não tenho preconceito de cor, mas pela manifesta falta de compostura […]” (BUARQUE, 2019, p. 19). Notamos como o preconceito étnico encontra-se latente e mal disfarçado por um falso moralismo, que está em consonância com o sentimento de aversão – “filha do medo, a raiva é mãe da covardia”.

Diante disso, a leitura aqui empreendida do romance de Chico Buarque tem como pretensão apontar para algumas veredas temáticas aí presentes, a fim de refletirmos sobre como a literatura pode gerar inquietações que nos desloquem de uma suposta zona de conforto. Além disso, o escritor mostra-se não tão distanciado da realidade que o cerca, a desabafar, por meio da literatura, o seu “inconformismo em relação ao que estão fazendo com nosso país” (BUARQUE, 2019, p. 35). É através de um singular engenho narrativo, quase labiríntico, que somos conduzidos pelas sinuosidades literárias, ao mesmo tempo com que deparamos com a “falência material e moral” do Brasil e de sua gente.

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

BORGES, Jorge Luis. Esse Ofício do Verso. Org Calin-Andrei Mihailescu: trad. José Marco Macedo . São Paulo, 2001.

BUARQUE, Chico. Caravanas. Direção artística: Olivia Hime. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2017. 1 disco sonoro (27 min), estéreo.

_______________. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000.

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