Uncategorized

Estratos

Estratos

 

Fim de ano letivo. Os ajustes, as últimas reuniões… Eu (para variar) passei do meu horário elaborando provas finais de recuperação. A vida é interessante. Quando eu era aluno não ficava em recuperação. Hoje elaboro, aplico e corrijo provas de recuperação. Esse tipo de avaliação tem como característica uma certa exclusividade em relação aos demais exames criados por mim ou por meus colegas. A primeira avaliação de cada bimestre é compartilhada com toda a turma ou com mais de uma turma simultaneamente. Todos têm contato com os textos escritos e com as imagens que seleciono. Podemos fazer comentários e até debates partindo dum documento comum. Gosto de ouvir as observações que alguns alunos fazem sobre as minhas provas. Na recuperação, esse compartilhar torna-se mais restrito. Restrito, às vezes, a um só aluno. As obras literárias selecionadas, as notícias e as ilustrações presentes nos exames de recuperação assim como muitas respostas interessantes dos alunos ficam arquivadas na escola. Vão para o local dos documentos não mais revistos. Quem sabe um dia, num futuro distante, algum arqueólogo, em suas escavações encontre um sítio onde havia, no passado, uma escola. Por um milagre, os papéis permaneceram! Nesse momento, então, aquela prova será compartilhada.

Assim como minhas provas, são as histórias que criamos na oralidade. Agora há pouco assisti a um vídeo sobre a maior viagem de ônibus do mundo. Um ônibus sai da cidade do Rio de Janeiro e vai até Lima, no Peru. Atravessam-se os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Acre. Daí, o ônibus entre em território peruano e passa por Cusco antes de chegar a Lima. A viagem foi feita por um apresentador que eu não conhecia. Para falar a verdade, só gravei seu primeiro nome, Carlos. Durante a viagem, ele conheceu algumas pessoas. Cada uma trazia uma história, um propósito na viagem. Vinham de lugares diferentes do Brasil e de outros países também. Eu pensei: cada fragmento de história mostrada no vídeo poderia nunca ter sido ouvido por mim e pelos demais moradores do planeta. Você deve estar pensando: isso é óbvio! Sim! É óbvio! Oito bilhões de pessoas poderiam gerar trilhões de histórias. Impossível o registro. Impossível termos a consciência de que criamos histórias. Fazemos parte da História. Somos personagens da história de alguém. Somos criadores de histórias onde os outros figuram como coadjuvantes ou antagonistas. Quantas narrativas já se foram com as cinzas? Quantas vozes já não reverberam mais? Foram também para os arquivos inacessíveis. Estão em situações piores do que as minhas provas de recuperação. Não há como recuperar os causos, as risadas, as lamúrias, as cantadas, as pragas, desaforos e gentilezas. Elas não se materializaram. Como resolver isso?

Tenho tentado criar listas de coisas a serem materializadas. Na arqueologia diária, vou escavando com cuidado. Sozinho ou em equipe. Tenho encontrado artefatos quase intactos. No transporte, acabo por quebrar porcelanas raríssimas de nem sei que dinastia. As joias caem de seus engastes. Na exposição, restam cacos restaurados, talheres e armas oxidados. Passamos pelas vitrines rapidamente e não nos atemos aos detalhes e nem ao conjunto. Seria problema da curadoria? Pensemos… Agora preciso terminar esta peça a ser exposta daqui a pouco. Sou arqueólogo, museólogo e curador de fragmentos de mim e de outros. O trabalho é árduo!

Seja bem-vindo. Não deixe de assinar o livro de visitas. Se não for possível chegar até o fim, volte outro dia e traga mais gente com você. Poste nas redes sociais. Se encontrar algum tesouro, entre em contato comigo. Convide-me para a sua mostra! Para a nossa mostra! Nossa curadoria! Poderemos encontrar muito material bom em camadas de nossas histórias.

 

Mostrar mais

Artigos relacionados

2 Comentários

  1. E quantas histórias não construímos nós mesmos? E quantas boas histórias temos a felicidade de ouvir e conhecer?
    Isso nos faz humanos: contar e ouvir histórias! Obrigado pela sua história!

    1. Eu é quem agradece pelo comentário e por tantas histórias contadas por você também.

      Grande abraço.

Botão Voltar ao topo