João Rodrigues

No meio do caminho

Era um daqueles dias em que a pressa nos consome, corpo e alma, que prestei atenção ao tempo, este senhor cujo relógio nunca adianta nem atrasa, que anda com a tranquilidade de quem faz o mesmo serviço há milênios, sem se preocupar com nada nem ninguém, consciente de sua eterna jornada.

Para mim, o tempo corria, como sempre dizem os apressados, ou melhor, os atrasados, então precisei correr. Uma chuvinha fina escorria no para-brisas do carro, e o limpador de para-brisas teve que ser acionado, o que me fez lembrar de um dedo indicador fazendo um “não”.

Aquilo mexeu com minha cabeça. O que seria aquele “não”? Será que estava querendo dizer algo negativo? Uma mensagem, talvez? Sou meio supersticioso – sempre me benzo antes de me levantar da cama, antes de sair de casa, antes de entrar em campo para disputar uma partida de futebol, quando um vento quente passa por mim e eu fico arrepiado… Tudo sempre quer dizer alguma coisa; nada é à toa.

Quando virei a esquina e dei de cara com a ponte, lá estava ela toda esburacada, “impassável”, com o riozinho escorrendo por baixo e rindo da minha cara, como um menino sem-vergonha que fica fazendo pouco da gente, quando a gente leva um escorregão no meio da rua. Em contrapartida, a velha ponte me olhou, envergonhada (havia tempo ela vinha dando sinal de que iria ruir), com um olhar de quem foi largada, abandonada; aquele olhar vago de um velho deixado no asilo depois de anos servindo a sua família. Assim se sentia a pobre ponte, que sempre serviu aos moradores do meu bairro com bastante afinco, feliz, mesmo enfrentando invernadas pesadas e sofrendo o descaso do poder público. Só não se sentia completamente inútil porque algum desavisado como eu vez ou outra aparecia por lá, mas apenas para retornar e sair cuspindo palavrões contra o burocrático Sistema.

Olhei para o para-brisas do carro. Ele até que havia tentado me avisar, mas eu não tinha entendido. Dei ré. A velha ponte me lançou um olhar de desculpas. Sorri pra ela, agradecido. Afinal, era sobre ela que eu passava todos os dias. Se não fosse por ali, teria que fazer uma volta enorme para chegar em casa.

Dei a volta, mais apressado ainda, tentando me desviar dos buracos que tentavam me derrubar pela rua – um aqui, outro ali, mais um do lado…

Finalmente, consegui chegar à saída da rua. Agora era só atravessar outra ponte e… mais buracos. Meu carro saiu aos pulos, e ri, pois imaginei meu veículo parafraseando um poema de Manuel Bandeira:

“Buraco não

Buraco não

Buraco não

Vige maria que foi isso, motorista?…”

 

E, em retribuição ao meu companheiro de aventura, parafraseei Drummond pra ele:

“Tinha um buraco no meio do caminho

No meio do caminho tinha vários buracos

Tinha um buraco

No meio do caminho tinha vários buracos

Nunca me esquecerei desse acontecimento…”

 

É, como disse outro poeta: “Tudo dá poesia”. Ou prosa.

 

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/photos/ponte-canal-bruges-cidade-antiga-6575193/

Mostrar mais

João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo