Valdeci Santana

Meu melhor amigo

              Meu melhor amigo

               Meu melhor amigo pesa cento e sessenta quilos, distribuídos em um metro e setenta e cinco de altura.

Mas, afinal, por que eu comecei justamente pelo seu peso? Eu poderia ter destacado algumas de suas tantas virtudes que eu admiro.  Não fiz por mal. Ninguém faz. Ele entende. É o que dizem. Eu ignorei todas as suas qualidades e o defini pelo peso. Eu cometi o mesmo erro das pessoas, que não enxergaram além do seu corpo.

Talvez um estranho usasse esta característica para defini-lo. Não seria o primeiro. Mas, conhecendo-o como eu conheço, não é aceitável.  Defini-lo assim é uma covardia. Nenhuma pessoa merece ser definida por uma característica física, bela ou não. Um detalhe físico é minúsculo diante da grandeza das características que compõem o ser humano. Acredite! Sei exatamente o que estou dizendo, pois, lidar com a estética das pessoas é a minha missão.

Meu melhor amigo não viverá muito tempo. Meses talvez. E isso não é uma analise minha, baseado nas frequentes crises respiratórias, quando seu peso começa a esmagar seus pulmões, ou quando as veias obstruídas diminuem o tráfego sanguíneo, deixando seu coração fraco. É uma constatação médica.  Está escrito bem ali, nos papeis que ele fingiu que leu, espalhados sobre mesa que nos divide, entre embalagens de fast food. Ele sabe que se continuar se negligenciando ele morrerá e ele não faz absolutamente nada.  Ele apenas mastiga suas dores e engole suas frustrações, num apetite invejável de uma ultima refeição.

Sempre me pergunto se ele realmente gosta do sabor destas besteiras que ele engole o tempo todo, ou se come pela necessidade de tentar ocupar com comida, um buraco gigantesco que se abriu dentro de sua alma. A fome é reincidente, e sua vontade de liquidá-la também é. O remorso também se reincide num ciclo viçoso.

Mas, não era exatamente sobre o seu peso eu queria falar. É o sobre as tempestades que sempre se intensificaram em sua mente. Desde sempre ele enfrenta mares revoltos em sua alma, arrastando-o para a profundeza de um vazio que ele não sabe explicar. É como se ele se afogasse em suas próprias desilusões, e quando um banco de areia parece socorrer seu naufrágio, ele percebe que está nas mãos das opiniões alheias, em torno da largura de seu corpo, e então, ele é novamente sugado para as profundezas de si mesmo, onde ele compactua com a imagem desaprovadora que as pessoas têm dele. É quando ele se mede com a fita dos outros.

As restrições físicas e a indisposição de tentar se socializar novamente o levaram à reclusão. Quando muito ele tolera minha companhia. Embora já tenha ameaçado despachar-me dezenas de vezes, mas, não o levo a sério, pois, sei que a mudez da minha companhia é tantas vezes tudo que ele necessita. As pessoas o machucaram ao longo da vida, quando tentaram compara-lo com padrões estéticos adequados. As pessoas estão sempre tentando esculpir o belo no outro, usando as feiuras de seus caráteres como ferramenta. Outras até tentaram ajudá-lo de boa fé, mas, buscavam soluções para o tratamento de seu corpo e não de sua alma. Não entendiam que seus problemas vinham de dentro para fora, mas, elas só enxergavam o externo. Os cento e sessenta quilos.

Ele ainda é aquele menino tímido da infância, aprendendo a lidar com as brincadeirinhas e com o insulto, enquanto se refugia em sua alma sufocada, alimentando monstros que hoje se estabeleceram em sua mente.

Todo mundo tem uma receita para seu emagrecimento, mas, ninguém consegue ouvir seu pedido de socorro, enquanto ele se afoga numa mente inundada.

Raramente ele fala comigo. E quando se posta diante de mim, é para insultar-se por meu intermédio. Meu amigo é duro demais consigo mesmo. Eu tento lhe mostrar o quão fantástico ele é. Mas, ele não consegue ver através de mim, a alma bela e as tantas qualidade que eu vejo. Ele só enxerga os seus malditos cento e sessenta quilos.. É como se ele odiasse o que vê. E nestes momentos sinto o quão é inútil a minha existência. Afinal, qual a utilidade de um espelho, quando não se consegue mostrar o que há além da aparência?

Fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/fotografia-de-close-up-da-mao-esquerda-humana-159333/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 5 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho", "O rei da Grécia" e "Mineradores: O preço da liberdade" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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