Valdeci Santana

O perfume da Rosa

  O perfume da Rosa

               Cansei de não ser inteira para viver à sombra de um homem que nem metade é.

               Acabo por decretar meu estado de liberdade!

A mulher gigante que despertei nunca mais se contentará com migalhas de atenção de quem não me merece.

Diante do espelho, eu confirmo o estrago que os longos anos de servidão e negligência comigo mesma, me fizeram.

Vejo um pássaro que se esqueceu do quão belo é voar. Uma prisioneira encarcerada pelas imposições de um matrimônio que exalava o doce perfume das rosas, mas, que se revelou na putrefação ocre da possessão, das mentiras e da agressividade.

Os elogios de outrora se tornaram ríspidas pontuações dos defeitos que um dia, foram minhas qualidades. As caricias cada vez mais escassas, se tornaram agressões traumatizantes. Minhas lágrimas passaram a seduzi-lo mais do que meu murmúrio de prazer. O monstro dedicou-se muito mais em extrair o meu sangue, do que em extrair minha libido.

Há tempos não cheiro o perfume das rosas! Nem me lembro mais de suas fragrâncias. Rosas se fizeram algemas nas mãos de quem quis me cativar. Não vejo mais rosas em meu rosto. Minha aparência é seca e descuidada, exatamente como os canteiros enfraquecidos lá fora. A rosa que retoquei diante do espelho para alegrarem os olhos de quem me ofertava espinhos, era de plástico. Superficiais como os sorrisos com os quais eu ocultei meu choro, inodoras e sem vida, exatamente como um adereço que reflete o mundo ao redor, porém, não reflete suas próprias emoções.

Como as rosas que aceitam pacientes a frieza do orvalho e a imposição do sol, eu aceitei as palavras rudes que garoavam sobre os assuntos que eu puxava. Suportei a indiferença e agressões, que se escondiam atrás de passageiras nuvens de falsas caricias. Logo me tornei um caule frágil e encurvado, como se estivesse sempre se desculpando, pela culpa que nunca foi minha. Porém, pétalas resistentes e brilhantes renasceram com essa minha decisão. Há sempre alguém que ama as rosas. Que as cultiva e que compreendem suas necessidades. E meu único arrependimento foi não me permitir ser cultivada nas mãos de quem fizera promessa de esperar a vida toda.

Abuso no decote do vestido que o meio homem nunca me deixou usar. Deslizo o batom nos lábios que ele tantas vezes machucou. Liberto os cabelos do coque casual, que só era desfeito quando puxado na agressão. Imito as rosas e abuso na fragrância.

Como alguém que retorna ao lar, eu retorno ao meu corpo. Dedico-lhe extremo zelo diante do espelho, porém, agora não estou a esconder os hematomas, estou reacendendo o brilho de uma mulher caída, porém, ainda gigante.

Ouço o portão se abrindo. Sei que ele entrará com seu azedume natural, procurando alguma coisa para comer. Há de se surpreender com a ausência das panelas sobre o fogão. Por certo, se perguntará sobre o paradeiro de sua serviçal solicita. Sei que agora ele está conferindo as malas dispostas no corredor. E quando ele irrompe pela porta, cobrando-me explicações com suas palavras cortantes, ergo meus olhos como lanças em chamas dispostas a lhe penetrarem a carne. Ele compreende que está diante de uma mulher que se parece muito comigo, mas, está bem distante da submissa que um dia eu fui. Desorientado ele tenta ser inteiro em meias justificativas.

Pontualmente ouço a campainha e abro a porta com o peito em chamas. O meio homem reconhece o homem inteiro que viera para ajudar com as malas e recua. Fica no quarto, o odor da minha fragrância, como uma ultima e impiedosa lembrança, para que ele inale pela ultima vez o perfume da rosa, que sou eu.

Fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/mulher-modelo-rosas-face-20639379/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 5 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho", "O rei da Grécia" e "Mineradores: O preço da liberdade" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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