Cristina Vergnano

Pachamama

Quando escolhia o tema da crônica desta quinzena, pensei em escrever sobre mães, devido à proximidade da sua data comemorativa. Sei que parece clichê, algo presente em diferentes mídias e, provavelmente, sem uma abordagem original. No entanto, é uma matéria de forte apelo emocional, da que ninguém está alheio. Muitos nunca conheceram suas mães biológicas, outros tantos já as perderam, porém, enquanto não vivermos no Admirável mundo novo, todas e todos teremos sido gestados e nascidos de uma mulher. Isso, considerando apenas o aspecto biológico da questão. Mas existe bem mais sob o rótulo da maternidade.

Decidida a temática, me veio à cabeça a imagem de Pachamama. Trata-se de uma palavra quíchua. Está formada por “mama”, cujo significado é mãe, mas, também, num sentido mais amplo, pode referir-se à autoridade, e por “pacha”, que significa universo, mundo, lugar e tempo. Portanto, poderíamos resumir Pachamama como a “Mãe da Existência”, afinal, gera todas as coisas e é senhora do tempo. Essa Mãe-Terra dá tanto a vida, o alimento, quanto os ciclos naturais, benéficos ou ruins. Entre os povos tradicionais e rurais andinos, é cultuada como divindade, celebrada em 1º de agosto, a quem se agradecem as dádivas da natureza.

Nossa relação com a Mãe-Terra, no contexto moderno e urbano, anda bastante degradada. Uma existência fundamentada na busca pelo lucro, exploração irracional de recursos e imposição de diferenças sociais vem-nos afastando dela e criando uma situação de risco à própria humanidade. A visão de uma Terra com atributos orgânicos, como uma entidade da qual somos filhos e, consequentemente, irmãos de todos os seres do planeta, nos escapa. Lembro-me, então, de São Francisco de Assis, cantando à irmã água, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão fogo, não apenas àqueles que consideramos seres vivos. Também recordo a inserção dos direitos da Natureza nas constituições da Bolívia e do Equador. Penso como, em nosso afã por conforto, progresso e avanços, esquecemos o quanto nossas ações causam morte e destruição dessa mesma Pachamama e de tantas mães (e pais, e filhas, e filhos) mundo afora.

Deixando a perspectiva macro, da mãe comum que nos acolhe, nutre e sobre a qual existimos, voltemo-nos às mães no sentido estrito, do dia a dia de cada um. Considero a maternidade uma opção de vida complexa, muito além do biológico. Exige bastante e deixa diversas mulheres em situação de vulnerabilidade ou opressão, quando, por exemplo, precisam conciliar trabalho e família, enfrentar violência doméstica, ou criar sozinhas seus filhos. Nem sempre elas conseguem viver em plenitude tal escolha (às vezes, involuntária e imposta). Podem surgir, daí, abandonos, ou relações familiares fragmentadas, dores compartilhadas por filhas, filhos e a mães. Não raro, essas circunstâncias são solucionadas ou remediadas por outras pessoas, as quais ocupam o lugar da progenitora.

Desse modo, caberia perguntar: uma mãe é, de fato, apenas aquela que gera? O que dizer das avós-mães, das tias-mães, das madrinhas-mães, dos pais-mães? E sobre as profissionais dedicadas ao cuidado, amparo e proteção de crianças, cujo acolhimento preenche suas vidas com carinho e lhes fornece ensinamento e orientação? Nesse sentido, a maternidade se expande e ressignifica, conservando sua essência.

Não somos filhos de chocadeira, não nascemos em laboratórios, nem fomos gestados em grandes úteros sintéticos. Na maioria das vezes, podemos encontrar mentoras, guias, amigas, inspiradoras que, mesmo sem compartilhar conosco seu DNA, merecem o título de mães. Às vezes, tal papel acaba sendo exercido, inclusive, por um homem. Por que não? No final do dia, não somos órfãos. Compartilhamos o seio de Pachamama. Somos irmãos e precisamos resgatar essa fraternidade, a fim de romper fronteiras, abraçar o outro, reconstruir a vida. Por isso, vale a pena comemorar. Feliz Dia das Mães!

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Link da foto em destaque: autoral. Montagem de fotos de esculturas tiradas no Jardim do Nêgo, Nova Friburgo, RJ.

Nota: Devido a problemas técnicos, voltei a postar a crônica “Pachamama”, originalmente datada de 08 de maio, hoje, 21 de maio.

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Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

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14 Comentários

  1. Excelente texto, que inspira e nos faz refletir sobre esse papel tão importante e necessário em nossas vidas. Obrigado !

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