Suplemento Araçá – Vol.02 – nº01 – Jan./2022 – Resenhas – “KARINGANAS DO ÍNDICO: QUANDO O TEXTO É PELE” – Lívia Penedo Jacob

ISSN: 2764.3751

KARINGANAS DO ÍNDICO: QUANDO O TEXTO É PELE
Lívia Penedo Jacob

KHOSA, Minyetani. Karinganas do Índico. Maputo: Editora Kulera, 2020. Obra ainda sem publicação no Brasil. Interessados podem contatar o autor em: fcossa6@gmail.com

Na escuridão da noite alta, à volta de uma fogueira, um grupo se reúne e todos escutam, com atenção, o mais velho dos humanos de que têm notícias. O homem deverá, em breve, narrar para a comunidade mais uma de suas histórias, inspiradas por sentimentos diversos, que podem variar do horror à comicidade, mas que sempre se revestem de incontestável sabedoria.

– Karingana ua karingana (era uma vez, era uma vez)! – Exclama o ancião.

– Karingana (era uma vez)! – Respondem-lhe os demais.

À exceção das palavras ditas em chironga, a cena reproduz um hábito por muito tempo praticado no Brasil, mas que, com o avanço da industrialização, hoje praticamente se restringe às zonas rurais, quilombos e aldeias indígenas. Nos espaços urbanizados de nosso “ocidente marginal”, a tradição de contar histórias também resiste; contudo, reconfigura-se, seja no formato roda de leitura, seja de maneira performática, conduzida por um/a contador/a de histórias profissional. Mas em nossa literatura escrita, a oralidade também se ressignifica, emergindo enquanto estilo, escolha cada vez mais corriqueira entre autores que pretendem valorizar suas ancestralidades, a exemplo do que faz Conceição Evaristo (1946 – ), em Olhos d’água, e Daniel Munduruku (1964 – ), em Memórias de índio – uma quase autobiografia.

No contexto da literatura moçambicana, observamos fenômeno similar nas obras de autores consagrados, dentre os quais cito Mia Couto (1955 – ) e José Craveirinha (1922 – 2003). Ainda desconhecido no Brasil, o recém-lançado escritor Minyetani Khosa envereda pelos mesmos caminhos em seu livro de estreia, conforme indica o título da obra, Karinganas do Índico, que além de fazer uma referência direta à literatura oral, homenageia Craveirinha, autor de Karingana ua karingana (1974). Na sua karingana, que se propõe uma coletânea de contos, Khosa não se prende às formalidades exigidas por nenhum gênero literário específico, optando por adotar uma linguagem fluida e direta. A informalidade é, aliás, um trunfo da obra, visto que transporta, para junto da narrativa, mesmo aquele leitor ignorante quanto ao contexto moçambicano.

E se as histórias que pela tradição são contadas junto às fogueiras quase sempre trazem um teor educativo, essas karinganas se permeiam por uma ética, graças à qual conseguimos entrever os choques civilizacionais de uma nação cuja independência tardia (1975) produz consequências desastrosas até os dias atuais. Esses “ecos da colonização” são feridas expostas desde o primeiro conto, intitulado “A cidade imparável”, retrato de uma grande cidade moçambicana (Maputo, supõe-se), assolada, em 2020, por um vírus letal, mas incapaz de seguir os protocolos sanitários internacionais devido ao negacionismo da população e à inércia governamental. Nesse contexto, a peste transformou a cidade dos mascarados em cidade fantasma, “órfã de um narrador que fosse para contar a história em primeira pessoa”, realidade que em muito se assemelha às mazelas sociais brasileiras.

Esse tom, que vagueia entre a crítica política e o retorno à ancestralidade, permeia toda a obra de Khosa. Dessa forma, os fantasmas, tão presentes nas nossas histórias de trancoso, e que – assim o suponho – devem ser igualmente recorrentes nas tradições orais moçambicanas, transformam-se num outro tipo de alma penada: são os negacionistas, mortos porque não acreditaram na existência do vírus letal; são os relacionamentos putrefatos, minados por uma cultura patriarcal que privilegia as orgias masculinas em detrimento da família; são as memórias de mais de uma década de guerra pela independência, o horror!

Destaco, nesse exercício de rememoração, o conto “À volta do Xiphefu (lamparina, em idioma local)”, que narra uma queda súbita e prolongada de luz, episódio, aparentemente banal, ocorrido ainda durante o isolamento forçado pelo sars-Cov 19. Ocasião perfeita para dar voz à Vovó Xiluva, matriarca que, reproduzindo a tradição de sentar-se em frente a fogueira para contar histórias, trará à tona vários episódios ocorridos durante aqueles anos de trevas da chamada Luta Armada de Libertação Nacional.

Lembranças não menos infelizes remetem o leitor aos tempos da escravização, conforme lemos em “Nas viúvas do rei”, um conto, supostamente contado pelo bisavô do narrador, que, “depois de fumar aquele nyau de folhas secas com um odor forte, tossiu ao ponto de expelir gazes fedorentos, acolhidos por uma gargalhada da assembleia”. Síntese dos antigos contadores de histórias, é por meio dessa personagem que inevitavelmente recordamos dos antigos reinados de Moçambique, desde os Mwenemutapas – primeiros povos que lutaram contra a ocupação de Vasco da Gama – até o Império de Gaza – resistência constituída no século XIX e à qual se refere a narrativa de Khosa. Vale ressaltar que essa lembrança de reis africanos escravizados junto à família – daí o título do conto – e levados para terras distantes é muito presente na oralidade brasileira, a exemplo de Chico Rei, o Galanga, personagem tradicional de Minas Gerais, cuja historicidade segue debatida.

Com passados coloniais distintos, porém tangenciais, não é de se estranhar que encontremos, nessa obra moçambicana, outras problemáticas sociais corriqueiras no Brasil, tal como as gravidezes não planejadas (em “Tunguinha”), a assimetria entre homens e mulheres no que tange à liberdade sexual (em “A desilusão” e “O triângulo amoroso”), o alcoolismo (em “Mafavuka”) e a incidência de estupros no próprio seio familiar (em “Nhembety” e “Sonhos trucidados”). Em suma, narrativas simples, acessíveis, quase sempre entremeadas por ditados populares que eventualmente se repetem – “no melhor pano cai a nódoa” ou “a desgraça nunca morre solteira” – num jogo em que a oralidade se reveste da escrita, fazendo desta uma roupa para a sua pele, nua e crua. Não há dúvidas de que essas Karinganas merecem atravessar os mares; afinal, nos revelam que entre o Atlântico e o Índico, nada é pacífico.

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Lívia Penedo Jacob é Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UERJ) e mestra em Estudos da Linguagem (PUC-Rio).

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