O fio da vida: Reflexões sobre o tempo nosso de cada dia

Narrativas sobre o tempo

Pensar o tempo é tão antigo quanto a própria humanidade! Os registros históricos mais antigos traduzem a relação do tempo com a vida e com a morte. Na antiguidade clássica, acreditava-se que as irmãs Cloto, Láquesis e Átropos, denominadas de Moiras controlavam os fios da vida no tear. Cabia a Cloto tecer o fio da vida, Láquesis enrolava o fio tecido e sorteava as atribuições que se ganhava em vida e Átropos, juntamente com Tânatos, cortava o fio vital. As moiras eram três senhoras cegas que determinavam os destinos da vida humana e dos deuses.

A mitologia grega revela-nos o tempo Cronos, como a primeira demarcação temporal na história, caracterizando o primeiro período da existência dos filhos de Urano e Gaia. Para auxiliar a sua mãe e controlar o apetite sexual do seu pai, Cronos castrou seu próprio pai com uma foice, jogando os testículos no mar. Urano amaldiçoou Cronos a ser traído pelos próprios herdeiros e com teor do cumprimento da profecia, Cronos devorava seus filhos.

 Na mitologia romana, Saturno seria equivalente à Cronos: Deus da fartura e senhor do Universo e teria sido avisado pelo Oráculo que um dos seus filhos o destronaria. Assim, este decide devorar todos os seus filhos, mal eles acabam de nascer, tentando evitar a profecia. Porém, Júpiter, um dos filhos consegue ser salvo e mais tarde cumpre a previsão do Oráculo.

Pensando o nosso tempo, as transformações sociais e culturais consolidaram uma nova maneira do ser humano se relacionar com o tempo cronológico quando estabeleceu o controle do tempo para controlar a produção do trabalho industrial. Desde então, o relógio é a marca maior do nosso tempo! O relógio aprisiona o tempo em parcelas de vida registradas em semanas, dias, horas, minutos e segundos.

Esta racionalização do tempo em quantidade aprimora uma perspectiva contrária ao tempo qualitativo da arte e da criação que não pode ser controlado. O tempo do trabalho passou a ser disciplinado, racionalizado, com vistas a se evitar o “desperdício de tempo” e a se ganhar dinheiro com o tempo. A ociosidade foi proibida e as relações sociais se automatizaram. Através do relógio cria-se a perspectiva de que ao se controlar o tempo, se controla a vida.

Falta de tempo e produtividade: Uma demanda urgente de gestão

Considerando algumas características da nossa sociedade, planeja-se o “controle” do tempo numa busca desenfreada de se fazer as atividades em menor tempo, para se ter tempo para fazer outras tantas atividades. Tudo é urgente, vivemos correndo, exaustos, insatisfeitos e adoecidos.

As facilidades decorrentes das tecnologias e principalmente através do uso internet possibilitam a relatividade do tempo do trabalho. As jornadas de trabalho nem sempre estão mais limitadas pela presença no espaço físico nem pelas horas contabilizadas para remuneração. A produtividade e a infinitude do desempenho estão diluídas em um expediente que não acaba mais.

Ao se diluir o tempo, dilui-se a vida e qualquer ação é a favor do trabalho produtivo. As horas fora do expediente são utilizadas em cursos e treinamentos, as horas vagas para postar e publicar as imagens de produtividade e desempenho, as saídas nos finais de semanas são para realizar networking… ou seja, a produção não para; apenas é de outra lógica.

 Vivendo neste cenário, estamos exaustos, cansados e buscando estratégias para otimizar o tempo, produzindo mais e descansando menos. As demandas sempre urgentes estão impulsionando muitas pessoas a desenvolverem estratégias para uma produtividade constante: fazer mais em menos tempo.

Ausência do tempo na vida: Uma narrativa coletiva

Vivendo entre a gangorra de um controle de tempo pessoal para produzir sempre mais e uma briga com o tempo que passa e ninguém percebe (aqui o tempo é um inimigo a ser combatido), as pessoas adoecem. Estresse e ansiedade passaram a ser uma condição naturalizada do corre-corre da vida. Viver estressado e ansioso é estar adequado a vida atual.

Muitos processos de coaching  são realizados no sentido de desenvolver estratégias e treinar a pessoa para realizar as expectativas sociais através de um modo de vida que valoriza o excesso de produtividade com metas alcançadas e dobradas imediatamente. O imperativo social é: “Quando alcançar a meta, dobre a meta!” – Aqui, não existe limite. O limite é uma questão da incapacidade da própria pessoa administrar a si próprio.

Nesta produtividade incessante, cada vez mais rápida e desenfreada, o limite do corpo é mais um desafio a ser superado. A vivência do espaço diminuído e do tempo ilimitado – uma vez que o limite do tempo passa a ser uma responsabilidade da gestão pessoal – tem exaurido as pessoas em uma velocidade de vida mortal. Uma das possibilidades é dopar-se de psicotrópicos lícitos e ilícitos para continuar exausto e correndo.

Estamos vivendo um tempo “fora do tempo”, onde o presente é pretérito contínuo. Estamos cada vez mais atrasados, mais desatualizados, menos disponíveis para estar presentes e sem vivências de contemplação. O final do dia é regado por insatisfações de incompletudes, anseios que não foram satisfeitos, sensação de tempo perdido e incompetência imperativa de poder ter feito mais.

Nesta busca desenfreada pela produtividade e alta performance a privação do sono permeia várias narrativas. Além de trabalhar enquanto os concorrentes dormem, existe também disseminada a ideia de que a produtividade será alcançada levantando as 5 horas da manhã e ainda realizando estratégias propositais de sono intermitente durante todo o dia. Sendo empresários e patrões de si próprios, a necessidade de “controlar” o tempo para realizar os projetos e alcançar as metas, acontece simultaneamente com uma construção narrativa do próprio self. “Seja você mesmo!” e “Você é foda!” são frases de efeito que ditas por um outro e repetida por si próprio desencadeia a elaboração de quem se é.

Não é necessário um esforço muito grande para identificar que muitas narrativas atuais sobre o tempo constroem e reforçam a perspectiva de uma vida “na correria” e sem tempo.  Ao narrar o seu próprio tempo o indivíduo constrói uma história conectada, atribuindo significado à sua própria vivência, uma vez que o tempo é um princípio organizador da vida humana, ao mesmo tempo que é uma experiência individual.

Além dessa vivência pessoal de um tempo próprio e particular, muitas vezes existe também em algumas narrativas uma espécie de “negação” ao tempo da vida, um combate simultâneo ao processo do envelhecimento biológico que acontece. É como se a dimensão temporal fosse vivenciada em polaridade: de um lado, o tempo passa a ser uma responsabilidade da pessoa, especialmente quando se fala de gestão de tempo e, ao mesmo tempo, uma luta (perdida!) contra o tempo que se move na ampulheta da vida, movendo os seus grãos de areia e afirmando constantemente a finitude da vida.

Por fim, defender o tempo enquanto uma variável a ser gerida pelo indivíduo para que ele possa produzir mais, é personificar Cronos; é viver como aquele que cria e produz no presente, mas mata os filhos e o futuro com as péssimas condições de vida ansiosa e depressiva que fundamentam esta perspectiva.

A demanda mais urgente é: se você não realiza o que deseja é porque não consegue controlar o seu tempo. Falta domínio pessoal desta variável, de forma que a pessoa não se desenvolve e permanece na zona de conforto – um lugar demonizado atualmente – e o indivíduo é o único responsável por não se desenvolver e, se desenvolver é se superar! E se superar, muitas vezes é adoecer, aniquilar e destruir a própria saúde.

A demanda é tão gritante, que descansar é quase uma condenação de improdutividade! Muitas narrativas revelam que o humano: vive o seu próprio tempo, desenvolve-se no tempo, vende o seu tempo, afirma não ter tempo, busca controlar o tempo e vive de mal com o tempo. Tem sido assim e, o nosso cotidiano atual é uma reedição diária do Cronos, o tempo aniquilador do futuro e devorador da vida no presente.

(Esse texto é de Iara Nancy Rios, amante das palavras e da alma humana. Mãe de Luigi, historiadora e psicóloga. Realiza trabalhos agregando produtividade e qualidade de vida através da metodologia “De bem com o tempo!”. É possível acompanhar mais através do instagram @debemcomotempo ou enviando e-mail para iaranancy.rios@gmail.com.)

Participe também dessa coluna! Envie o seu texto (de desabafo ou reflexão) para o e-mail lmsn_91@hotmail.com ou entre em contato pelo instagram @luiza.moura.ef. A sua voz precisa ser ouvida! Juntos temos mais força! Um grande abraço e sintam-se desde já acolhidos!

Luiza Moura.

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