Cristina Vergnano

Nem tão banal

Imaginem chegar em casa na hora do almoço e se deparar com uma poça d’água no chão da cozinha, logo abaixo da porta da geladeira. O que teria havido? Com uma vistoria atenta, se notam gotículas na parede interna do aparelho. Os víveres lá dentro se encontram umedecidos, menos frios do que o indicador eletrônico marca e as coisas no congelador começam a ficar moles. Conclusão: pifou a geladeira!

O que gela, diante de tal situação, é nosso sangue, pois, no frequente calor carioca, esse eletrodoméstico é um item de primeira necessidade. Se estiver cheio, então, a angústia aumenta, pois pensamos logo no monte de alimentos que podem estragar. Com os preços aumentando na velocidade da luz, o tanto de gente passando fome e a dificuldade em achar profissionais competentes, se instaura o pânico.

Máquinas e utensílios não são eternos. Sofrem desgaste e acabam por dar defeito. Quando funcionam com energia elétrica, ainda estão sujeitos às oscilações da rede, potencializando os estragos. Logo, todas as pessoas, eventualmente, passam por tais apertos.

Essa fatalidade aconteceu comigo faz pouco tempo. Nossa geladeira, uma senhora com mais de vinte anos, pediu arrego. Posso, no entanto, me considerar com sorte, pois meu marido, um estatístico epidemiologista, foi, na juventude, técnico de refrigeração. Detectou o problema (compressor travado), localizou uma loja que o vendia, foi comprá-lo e se pôs a fazer o reparo. No final, depois de bastante trabalho, o resultado foi satisfatório, com menor gasto e salvaguardando os produtos armazenados.

Apesar de um fato mundano, o episódio pode oferecer a chance para reflexões interessantes. A primeira delas é sobre nossa dependência da eletricidade. Desde que descobrimos a maneira de utilizar a energia elétrica, fomos criando aparelhagens para realizar diversas tarefas e acabamos desaprendendo modos mais “primitivos” de fazê-las. Ainda me lembro da minha avó, nascida no século XIX, batendo bolos e manteiga à mão, mesmo tendo batedeira em casa. Esquisito? Pode ser… Afinal, por que ter tanto trabalho e levar mais tempo, usando a força motriz dos braços, se podemos recorrer à máquina? Nem questiono. Apenas pontuo o fato de utilizarmos, muitas vezes sem grande necessidade, meios eletromecânicos, quando poderíamos até saborear a atividade artesanal de produzir algo.

Também há a constatação de que várias pessoas quase surtam diante da falta de luz, numa ansiedade por não saber o que fazer. Há, mais ou menos, um mês, por exemplo, a concessionária de eletricidade fez uma manutenção de cerca de três horas e meia na minha rua. Envolvia a poda de árvores em torno dos cabos de força. O serviço havia sido comunicado uns sete dias antes, alertando sobre a suspensão do fornecimento de eletricidade. Na data em questão, tive a oportunidade de observar algumas reações bastante contrariadas e um pouco dessa agonia.

Da minha parte, me preocupo com as comidas que podem estragar e, admito, tenho dificuldade para dormir no calor (limitação minha). Porém, com frequência, diante da queda de energia, aproveito para ler um livro, conversar e usufruir dos ruídos naturais (folhas sopradas pelo vento, pios de pássaros, tamborilar da chuva, chiado de cigarras), em muitas ocasiões, abafados pelo som dos artefatos (televisões, aparelhos de som, aspiradores de pó, geladeiras etc.). Ainda assim, preciso ser sincera e reconhecer que já estou, como todos, viciada nesse conforto. Portanto, ligo interruptores que não funcionarão, clico no botão da fechadura eletrônica do portão, inativo sem a luz, e “quebro a cabeça” atrás de soluções imaginativas para atividades banais, como aquecer uma fatia de pão para o café da manhã sem o auxílio do grill ou do acendimento automático do fogão.

O segundo pensamento que senti emergir desse episódio da geladeira se relacionou ao conceito de um ser humano multifacetado, com diversas habilidades (culpa das competências versáteis do meu marido). Nesse sentido, as pessoas com tal perfil se opõem àquelas centradas na alta especialização que vimos crescer durante o século XX, diante dos avanços da ciência, da técnica e do aprofundamento dos saberes. Concordo que não temos condições de abarcar de forma plena tantos conhecimentos. No entanto, creio que, se cultivássemos habilidades intelectuais, físicas, artísticas e manuais em medidas razoáveis de maneira mais equilibrada, conseguiríamos lidar com a eventualidade de modo menos angustioso, mais prático e criativo.

Ao que tudo indica, há uma tendência à valorização de uma maior amplitude de habilidades nos indivíduos do século XXI, principalmente no mundo do trabalho. Todavia, parece-me, isso não prescinde do suporte das máquinas. Na atualidade, inclusive, se acentuam as discussões sobre a dependência de tudo o que é digital e da inteligência artificial. Esses aspectos, contudo, são complexos, dão pano para manga e constituem bons temas para outras ocasiões. Por hora, fiquemos com uma geladeira “velha” consertada (uma ação ecologicamente positiva) e os caminhos de ponderação capaz de provocar.

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Link da foto em destaque: autoral.

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Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

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6 Comentários

  1. Incrível como você consegue escrever um texto delicioso sobre algo tão sem graça e ao mesmo tempo aflitivo que é a quebra de uma geladeira. Tudo o que a cerca pode ser eternizado. Parabéns

    1. Olha, Paula, fico super contente por conseguir este efeito para vocês leitoras e leitores. Estou, realmente, vendo crônicas nos fatos mais simples e corriqueiros. Algo, aliás, bem gostoso. Obrigada pela leitura. Bjs.

  2. Pois é, já tive pesadelos com um futuro pós apocalíptico, onde regressaríamos às conservas, carnes em salmouras e ferro à brasa. Onde sobreviveriam os com habilidades eletromecânicas, que soubessem usar meios antigos de comunicação, caça e pesca. Sem contar a casinha… De fato, eu seria uma das primeiras exterminadas! 😂

    1. Puxa, Alessandra, que pesadelo, hein?! Mas,já dizia Einstein (ao menos, se atribui a ele): a quarta guerra mundial será [travada] com paus e pedras. Nosso avanço talvez só se compare à nossa dependência e auto imposta falta de criatividade e desenvoltura para enfrentar o mundo de maneira simples. Esperemos que nunca cheguemos a isso e encontremos caminhos mais sustentáveis. Obrigada pela leitura. Bjs.

  3. Ótimo texto, Cristina! E eu diria mais, nossa sociedade está montada para jogarmos fora e comprarmos um novo! Recentemente meu purificador de água deixou de gelar e o conserto ficava em mais de 2/3 do valor do produto novo, mais uma demora de um mês, para a peça vir da fábrica… Muito mais prático, rápido e econômico, comprar um novo…. Bjo

    1. De fato, Mônica, a sociedade está montada assim e a troca por um novo bem parece mais fácil. No entanto, estamos caminhando para o mundo de W.A.L.L.E (viu o desenho animado da Disney-Pixar?). Onde colocaremos tanto lixo e de onde tiraremos mais e mais recursos para saciar a sede incontrolável por novidades tecnológicas? Se sucumbirmos, terá sido um suicídio consentido num longo processo. Esperemos que não seja assim! Obrigada pela leitura. Bjs.

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