A Sétima carabina

Sobibór

Meu nome é Wolf, segundo sargento da SS, servindo em Sobibór a um ano.

Aqueles rostos esquálidos, os olhos numa profundidade que quase não se enxergava as retinas. Não tinham cor. Não tinham vida. Alguns caminhavam pelas ruas lamacentas do campo de concentração sem que a física explicasse como aquele corpo conseguia se equilibrar, era um amontoado de ossos cobertos por uma camada fina de pele, apenas a existência da alma justificava aquele milagre. Era a natureza cumprindo o seu papel de preservação, a busca pela vida sempre, até o último suspiro.

Os alojamentos onde se amontoavam os corpos não justificava o nome, eram depósitos de fome, com beliches, onde tudo era pobre, tudo era podre. A dor e a tristeza sentia-se no ar. As paredes de tábuas de cor suja, o chão não se aguentava de tanta história, tanto horror, tinha marcas de gotas de lágrimas que secaram e ficaram encrustadas nas ranhuras. Era frio, mesmo quando o sol numa parte do ano passava por ali.

Era sombrio, as guaritas, as cercas de arame que cercavam tudo, os trens vomitando famílias inteiras carregando nada, os caminhões do exército alemão indo e vindo, os soldados com seus sobretudo e suas insignias nazista no braço, os grupos que eram chamados para ir e nunca voltavam. Mas os rostos, era nos rostos daquela gente, soldados e prisioneiros que eu notava a falta de gente dentro daqueles corpos, daqueles olhares. As guerras existem para isso, para matar tudo que existe de humano dentro da gente.

Não podemos duvidar daquilo que acreditamos, mas a vezes me pego indagando se não existiam exageros naquilo tudo.

Pessoas sujas e maltrapilhas, doentes, crianças agarradas na saia da mãe perguntando quando voltariam para casa, quando iriam comer, para onde estavam indo.

Aprendemos que o Fuhrer era o nosso deus, aquele que na terra conduziria a Alemanha para um lugar merecido no mundo. Os ensinamentos que recebemos durante os últimos dez anos nos prepararam para sermos uma raça pura, diferente de todos.

As dúvidas, os medos, guardo comigo, dividir isso com alguém pode ser perigoso, posso ser visto como um traidor e despertar a ira do Reich. Mas não controlo meus pensamentos, eles insistem em indagar, covas rasas, fuzilamentos, câmaras de gás.

Noto que alguns soldados cumprem suas ordens com uma dose de humanidade, com um  certo pesar no olhar,  mas que precisam manter escondidos no fundo da alma. Um soldado numa guerra não  pode ser humano, não pode ter sentimentos.

Eram dezoito de dezembro de mil novecentos e quarenta e dois, havia nevado na noite anterior,  a nova ordem determinava que fosse parado de construir covas individuais, de agora em diante, os corpos seriam amontoados em valas, grandes buracos onde coubessem muitos de uma vez.

Fui chamado à sala do oficial Heydrich. Iria fazer parte do pelotão de fuzilamento naquela manhã.

Fuzilamentos eram normais, aconteciam muitos todos os dias , mas a dois anos em Sobibór nunca havia participado de nenhum, seria o meu primeiro e último naquela guerra.

Arrumei o uniforme, carreguei a carabina. Mesmo vendo o clima de guerra que estávamos vivendo não conseguia deixar que alguns sentimentos me atingissem, compaixão e empatia por exemplo.

Wurzburg

Sentávamos á mesa todos os domingos, meus pais, meus irmãos, filhos e sobrinhos. Era uma propriedade pequena onde cultivávamos cenouras, cebolas e uma pequena criação de cabras de onde extraíamos e comercializávamos leite.

Nas tardes sentávamos os mais velhos em torno do rádio e nos atualizávamos sobre a política da Alemanha no começo dos anos trinta. Hitler agora era o homem forte do nosso país.

Durante anos aprendemos sobre a benevolência do nosso líder. Toda a Alemanha era inundada com propaganda sobre o governo de Hitler, nas nossas noites e tardes, entre as colheitas e o burburinho das  crianças fomos abraçando aquelas ideias.

Wurzburg que era uma pequena cidade do sul, basicamente de agricultores que cresceram ali, viam na figura do Fuhrer a possibilidade do país se retirar do Tratado de Versalhes. Muitos dos moradores mais velhos lutaram na primeira guerra.

Em vinte e oito de junho de 1919 as principais nações vencedoras do conflito reuniram-se no palácio de Versalhes, em Paris,  para novas negociações de paz, cada uma querendo um pedacinho dos interesses dos perdedores, a Alemanha foi a grande perdedora por ter sido considerada a culpada pela guerra.

As ideias nacionalistas de Hitler vinham muito de encontro aos nossos anseios e resgatava um sentimento patriótico que a tempos havia desaparecido.

Aprendemos então que o povo judeu era o grande inimigo a ser combatido.

Acompanhamos pelo rádio o desenrolar e os desdobramentos da noite dos cristais, mesmo distante, sentíamos os cacos sob nossos pés.

Em Wurzburg, tínhamos muitas festividades onde as famílias se reuniam e trocavam presentes, uns ajudando os outros em suas propriedades, inclusive algumas famílias judias.

Mas as coisas mudaram, por conta da propaganda do governo e dos discursos de Hitler, muita gente já não tolerava mais a presença dos Judeus, mas não nos incluímos entre esses.

Me formei em mecânica de automóveis e algum tempo depois me alistei no exército.

Então veio a segunda guerra.

A Sombra dos Pinheirais

Eu vim da paz.

Aos domingos sentávamos numa mesa, durante a semana colhíamos cebolas e batatas e compartilhávamos o convívio humano, praticávamos a humanidade instintivamente, sem nos dar conta do quanto esses momentos nos tornavam humano, sem dimensionar a importância desses atos em nossa construção quanto seres sociais que somos.

A mesa sob a sombra dos pinheirais que  ia nos engolindo a medida que os segundos iam construindo o tempo.

Mas veio a guerra, não questionávamos as  decisões do Fuhrer. Após a perda na primeira guerra a Alemanha foi considerada a maior culpada e por isso vinha sofrendo as consequências impostas pelos acordos assinados.

Em 1933, em Wurburg, numa disputa de terras, os Gunter foram mortos, toda a família, inclusive as três crianças. A pequena cidade ficou consternada, passamos anos tentando entender. A todo momento me lembrava do acontecido, em cada rosto que passava no campo, em cada grupo com crianças agarradas na barra da saia da mãe, chorando, com medo, inocente.

A chuva miúda que enlameava o campo ensopava o solo, misturando neve, lama, sangue, histórias e dor.

Muitos grupos eram conduzidos a todo momento, mas quando levávamos as crianças para os doutores era o momento mais difícil, mesmo os mais duros soldados, com o maior dos ódios dos judeus, doutrinado para aquilo, ensinado, adestrado, carregava um peso no olhar. Nunca eram os mesmos que voltavam para buscar os corpos e jogá-los nas valas.

O cheiro da torta de maçã que mamãe fazia enchia meu subconsciente nesses momentos e se aglomeravam nas minhas lembranças e a cada dia eram mais e mais, isso entorpecia. Descobri que essa era uma estratégia para boa parte dos soldados que não tinham escolha, seguiam  ordens, mas era impossível deixar de ser humano. A sombra dos pinheirais encobria Sobibór mesmo sem sol, mesmo em dias de nevasca, o solo ficava branco, os tetos ficavam brancos, os hálitos esfumaçavam e a vida não andava, escorregava no lamaçal, meio neve, meio lama, tudo era frio, culpa daquela maldita sombra que não permitia que sol se aproximasse para oferecer um pouco de calor a todos aqueles soldados que tinham que cumprir as ordens mais absurdas sem contrair um músculo sequer.

Saí da sala do capitão certa manhã e cruzava um dos pátios do campo em meio ao frio de sempre quando cruzei com mais um vagão descarregando um grande número de famílias de judeus, carregavam malas e algumas trouxas, em uma delas um homem alto com olhos fundos, cabelos desgrenhados, pernudo, segurava uma menina de dois anos aproximadamente no colo, de pele cristalina e um medo sonolento, a mulher com um vestido pesado, rasgado na  barra, tinha as bochechas salientes, olhos que pareciam procurar algo, segurava pelas mãos um menino de uns seis anos, cabelos bem lisos, com um pequeno sobretudo, uma calça que imitava um homem e carregava um boneco em uma das mãos, tinha um olhar curioso e um sorriso que não cabia em Sobibór,  passou por mim como um anjo, que certamente era do que se tratava.

O Fuzilamento

Empunhei a carabina, verifiquei a munição  e me posicionei no pelotão.

Estava frio, uns floquinhos despencavam sem pressa do céu, o mesmo céu que diziam ser de Deus, duvidei, naquela hora em que me preparava para cumprir a ordem que me havia sido incumbida, desacreditei de todas as formas de deuses, de todo o meu preparo militar.

Caminhamos em dez homens na direção de uma das valas que ficava a leste do campo, eu era o sétimo na fila, a sétima carabina. Questionei todo o ódio que haviam me ensinado a ter dos judeus, os passos não progrediam, o frio aumentava, os flocos de neve já não possuíam a candura de antes.

lembrei de mamãe e papai me levando pelas mãos até a igreja do reverendo Max, lá eu nos meus primeiros anos, ele me apresentou Deus, me falou de amor ao próximo, de jesus e sua crucificação, por um momento achei aquele campo de concentração tão próximo daquela história, mas vivendo tudo aquilo naquele lugar, também recordei-me do que dizia sobre o inferno, das chagas, do fogo, das dores, em segundos certifiquei-me, o inferno é frio.

Posicionamo-nos, eu era o sétimo na ordem, a sétima carabina.

A suástica no ombro e no capacete, a bota enlameada, o uniforme preto com a cruz nazista  e a águia imperial Parteiadler, trouxeram uma família. Um homem, uma mulher com uma menina de dois anos aproximadamente ao colo e um menino de seis que com uma mão segurava a mão do pai e na outra um boneco.

Ouvimos o primeiro comando, erguemos nossas carabinas, eu era o sétimo no pelotão, a sétima carabina, meu primeiro disparo seria na direção do menino, que sorriu com aquele sorriso que não cabia em Sobibór.

Os estampidos soaram uníssonos ao comando de fogo, cumpri minha missão de militar da SS.

Os corpos despencaram na vala sem pena. Viramos em fila e seguimos rumo ao alojamento, como era de praxe após esse tipo de serviço, estávamos de folga.

Fui para casa, olhei meus filhos, nunca mais dormi. Me tranquei dentro de mim, não vi meus filhos crescerem, não vi a guerra acabar, não vi mais Sobibór, não vi o mundo seguir. Nunca consegui chorar, mas também nunca mais sorri.

Morri quatro anos depois no manicômio de Beelitz.

 

Link da foto: autoral

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