Ivone Rosa

[A]BALADA

Segunda quinzena de julho, primeiro dia das férias. Sim, é um sábado e normalmente ficamos na cama até mais tarde. Eu poderia, mas levantei às cinco e meia e escolhi fazer uma caminhada.

Saí de casa um pouco depois das seis, vestida com meu moletom cor de rosa e um tênis branco, bem velhinho “de guerra”. O sol nascera há pouco, e o vento frio, típico das manhãs de inverno, sussurrava algo em meus ouvidos. Não dei atenção. Coloquei o capuz e, de mãos nos bolsos, andava sem pressa, me sentindo confortável.

As ruas, ainda desertas, pareciam felizes a curtir um vago silêncio. Cheguei ao bairro vizinho. À distância pude perceber um carro estacionado, em frente ao portão de um condomínio, com a porta traseira aberta e as lanternas acesas.

Parei e observei os detalhes, poderia ser um assalto, mas não havia nenhum movimento nesse sentido. Continuei minha caminhada com um olhar atento à cena; um homem de meia idade falava alto no interfone:

– Meu amigo, eu preciso trabalhar! Está tudo certinho. O endereço é esse, o número também é esse! É o senhor que tem saber o apartamento dela! Eu não posso ficar com a passageira no meu carro! Tenho que pegar outra corrida.

Outras pessoas voltavam da padaria, olhavam para dentro do automóvel e balançavam a cabeça parecendo lamentar. O motorista andava de um lado para outro irritado. Quando passei ao seu lado, ele me abordou:

– Por favor, a senhora conhece essa mulher? – perguntou apontando para o carro.

Era uma bonita jovem, mesmo com a maquiagem borrada, com um vestido preto colado no corpo, deitada no banco de trás. O mau cheiro de bebida alcoólica tomava conta do espaço.

– Ela entrou no seu carro sozinha? Qual o nome dela? – perguntei e notei que o porteiro se aproximou da grade sem abrir o portão.

– Pela chamada aqui é Fabrícia, mas o porteiro disse que ela não mora aqui.

– Ô rapaz, você acha que estou mentindo? Trabalho aqui há mais de vinte anos! Conheço todos os moradores pelo nome, essas crianças todas até os mais velhos! Não tem ninguém aqui com esse nome, não! Vê aí nos documentos se é esse nome mesmo! Oh meu Padre Cícero, aborrecimento já de manhã!

– Como eu vou mexer na bolsa de uma passageira?! Tá maluco?

Eu ali no meio do bate-boca, cozinhando meu cérebro porque aquele rosto pálido com sardas, era familiar…não tive nenhuma aluna com esse nome. De onde conhecia aquela menina?

A discussão continuava:

– Como é?! O senhor quer que eu volte com ela para outra cidade onde a peguei? Estou vindo da Região Oceânica, sabe quantos quilômetros são de lá pra cá? Ela entrou no carro andando e conversando. Nem vi quando ela dormiu! Também não posso encerrar a corrida. Como fica minha situação agora?

No carro eu a chamava pelo nome (Fabrícia) sem tocá-la. Ela permanecia imóvel, apenas respirava. O motorista ligou para emergência e a seguir ficou mais nervoso:

– Lá no 192 disseram que é necessário um acompanhante na viatura – afirmou olhando pra mim.

Antes que eu respondesse, vi uma mulher de cabelos ruivos, com um poodle na coleira, chamar o porteiro. Conversaram por breves minutos e ela saiu. Foi até o carro e gritou:

É a Titi! O que aconteceu com a minha filha, minha Domitila?! – questionou com voz de choro, deixando o cão com o empregado do prédio. Ela passou mal?

-Acho que foi bebida, senhora, disse o motorista.

– Impossível, Titi nunca bebeu! Era de casa para a faculdade e da faculdade para casa!

Eu a peguei em frente a um barzinho…

– Precisamos levá-la ao hospital. – afirmou arrumando os cabelos

– Ela precisa é de um café forte e uma cama. – disse o porteiro.

–  Já disse que ela não bebe! Gritou histérica a mulher.

Deixei a discussão pra lá. Queria aproveitar minhas férias. Mas eu sabia: ainda posso confiar na minha memória, lembrei-me do apelido. A pequena Titi fazia natação junto com minha filha. Quis cumprimentar a mãe, não sei se por constrangimento ou histeria, ela me ignorou. Desejei um bom dia a todos e voltei para casa. Devia ter escutado o vento.

Ivone Rosa

Instagram: @profaivonerosa

ref. imagem: /pixabay.com/pt/photos/dan%C3%A7ando-balada-dan%C3%A7arinos-boate-206739/

 

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Ivone Rosa

Professora de Literatura & Produção Textual Pós- Graduada em Gestão Educacional Roteirista formada pela Academia Internacional de Cinema-AIC/RJ Poetisa, cronista e contista 1º lugar - melhor intérprete Concurso Poesia SESC Niterói/RJ Menção Honrosa -Concurso Poesia -Duque de Caxias /RJ Participações: Antologia Diário da Poesia, Biografia Jornalista Jota Sobrinho, Diário em Poemas, Almas em prosa e verso, Coletânea Diários Escritos. Participações nos Fanzines: Poezine[Lit.na Varanda] e SerMentes - Sec.Educ.Niterói/RJ Palestrante Escola Pública sobre a Resistência da Mulher

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Um Comentário

  1. Ivone Rosa. Se não tivesse seguido seu desejo, não teríamos ganhado essa bela crônica.

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