Leandro Costa

A VETUSTA CASA DOS FIRME


Fonte: https://pixabay.com/pt/photos/lugares-perdidos-villa-ru%c3%adnas-2759275/

A VETUSTA CASA DOS FIRME

Zé Firme roncou o fôlego que as constelações lhe roubaram ao se exibirem em caleidoscópio.
Uma estrela, a mais despudorada, devolveu-lhe a língua num tapa que o fez bufar e berrar.
Acalmando a respiração, franziu a testa e pôs a mão abaixo do ouvido direito, tentando suster a guerra que se espalhara pelo enorme território onde siso e corpo nada acordavam.
Na penumbra do quarto, o sol pestanejou as densas cortinas, tentando ajustar as pupilas aos pixels do dia primeiro de abril.
Levantou trôpego, com a vista ainda anuviada, rumou para a cristaleira das cachaças envelhecidas, aplicou uma gota da feroz no buraco do dente e tomou o resto numa talagada sem fazer careta. O dente ficou bêbado.
Um latejado insistente ainda bateu na porta de cedro de sua casa, um dos solares que residia na parte centenária da cidade. Alguém estava lhe importunando às sete horas da madrugada.
Tentando mover os lábios, pronunciou algumas palavras cerradas:
— Dete…. a porta.
Claudete, a empregada, chegou àquela casa quando os avós dele eram meninos. Tinha a juventude de um vampiro e a surdez de Beethoven. Nenhuma vibração daquele lar lhe escapava. Talvez tivesse ido comprar as coisas do café da manhã.
Desceu, às apalpadelas, a escada que comunicava seu quarto ao hall, estalando os dedos para invocar a ira de sísifo e nero, dois demônios caninos que hibernavam no vão abaixo dos degraus.
Espiando pela portinhola, viu dois sujeitos de igual farda, mesmo corte de cabelo e postura padrão. Se não tivesse visto a garrafal logomarca da Prefeitura, teria lhes despachado com a antipatia de sempre.
—Bom dia, senhor. Somos agentes do Departamento Municipal Predial. Eu me chamo Hans e este é o meu colega Geraldo. Perdoe-nos o horário inconveniente e a forma como batemos à sua porta. Queríamos ter certeza se tinha gente morando na casa.
Abrindo a porta, esperou que os cachorros saíssem para demarcar território e divertir-se com as duas presas. Nenhum dos dois lhe veio em socorro e Geraldo continuou a cantilena oficial.
—Estamos num trabalho de vistoria das edificações mais antigas da cidade e a sua é a primeira da lista por causa da idade do imóvel.
Antes que a porta socasse as ventas dos tucanos, Hans sacou um papel de uma pasta surrada, elevando-o com ar de triunfo:
— Aqui está o mandado de inspeção. Precisamos entrar.
Calado para não acordar o bêbado e disfarçar o bafo, leu o documento, levantou as grossas sobrancelhas, fez um muxoxo e os acompanhou na inspeção da casa que terminou na cozinha, onde Claudete havia se materializado e preparado um lauto café da manhã.
Uma mesa com ovos caipiras cozidos, cestos com frutas do pomar da casa (pitangas, manga, laranja da terra, goiaba selvagem e uvas), pães caseiros temperados com gergelim e pimenta calabresa, um excelente queijo coalho e café de sombra coado na hora, foi servido aos aspones.
Enquanto assistia a dupla tomar o desjejum, o velho Hans, entre mastigações, perdigotos e farelos de pão, principiou a preleção ao diagnóstico da casa:
— Senhor Firme, esta parte da cidade é uma boca de dentes amarelos e cariados que precisam ser extraídos. Quem chega a São Joaquim é recebido pelo bafo de café e fumo do século passado…
Antes que Hans percebesse o seu cochilo, foi salvo pelo sussurro sorridente de Geraldo:
— Há dois e saturados anos escuto o chefe comparar as casas desta parte da cidade com dentes. No restante do discurso a pós – modernidade será comparada aos alvos dentes implantados da avó dele. Deveria ter sido dentista ou político e não agente municipal.
Fitando os dois com um olhar de raiva e vergonha, Hans atalhou para o diagnóstico:
— Este siso caduco tem um teto que vai cair na sua cabeça, rebocos parcialmente caídos, instalações elétricas que ainda vão causar um incêndio e um sistema hidráulico que está enchendo a casa de infiltrações. Por que o senhor ainda mora nessa armadilha?
Cabisbaixo, Zé Firme ficou cofiando o rosário do rosto com a mesma tranquilidade da maré mansa a barganhar com as pedras, na praia que se podia ver da janela da cozinha.
Durante a meia hora do pequeno tribunal de acusações e agouros que se seguiu ao diagnóstico, o advogado da cousa pública viu um rosto de dia limpo e ouviu uma respiração de mar tranquilo.
Com os argumentos ruídos , espraiou os olhos pelos mistérios da casa até encontrar um pai, uma mãe e um menino em várias cenas de vida: o nascimento, o batizado, os primeiros passos, uma troca de dente, o choro do primeiro dia de aula, apresentações infantis na escola, a primeira comunhão e o velório do casal.
Um detalhe desta última cena, fez Hans apurar a vista e cansar a mente, procurando distinguir as formas de um vulto que escorria do teto para as paredes e destas para o piso até desaparecer na sombra de Zé Firme, sentado diante dele na mesma postura do menino da foto.
Passou com força as mãos pelo rosto, esfregou os olhos, tirou o notebook da pasta e fez uma pesquisa. Os dados do sistema de imóveis e proprietários informaram que o dono tinha trinta e seis anos, herdara a casa dos pais, nunca morara em outro endereço, não possuía outra casa e nunca trabalhara na vida.
Olhando discretamente para o relógio e para o colega, Geraldo interrompeu suas conjecturas e o fez relatar, sem rodeios, a decisão final.
— Aqui está um auto de evacuação urgente. A única coisa que ameniza a sua situação é o fato do velho sobrado estar no centro do quarteirão onde foi construído e não oferecer riscos a outras pessoas e casas. Somente por isso, não vou lhe aplicar uma multa. Mas, se o senhor não respeitar o prazo de saída, vai ter que pagar o preço que vale o terreno.
Fitando-o com gravidade, Zé Firme recebeu o papel, passou-lhe a vista e não conseguiu evitar outro muxoxo.
— Aceite minha sugestão: o melhor que faz é demolir tudo, vender o terreno, conseguir uma boa grana e mudar para um apartamento de muitos metros quadrados na zona nova da cidade. Conte com minha ajuda se precisar.
Geraldo, embora não muito simpático ao colega, endossou, de forma branda, o diagnóstico e a solicitude:
— Sua casa é uma peça fantástica! Sou arquiteto e grande apreciador de casas antigas. Se tivesse uma forma de restaurá-la, trabalharia de graça para o senhor. Concordo com meu colega. Deveria mudar hoje mesmo.
Despedindo-se dele, entregaram-lhe seus cartões com contato telefônico, reiterando a oferta de ajuda na mudança, demolição da casa e venda do terreno.
Deixando o rabugento distanciar-se, Geraldo chamou Zé Firme à parte e entregou-lhe um objeto inusitado:
— Encontrei esta caixinha amarrada em um cordão de guizos, pendurado no teto do sótão. Espero que traga boas lembranças ao seu dia.
Revestida de veludo azul-marinho, com formato cúbico e uma abotoadura dourada, a caixinha era leve e tinha tamanho para conter uma jóia pequena e delicada.
Como uma criança que quer prolongar a surpresa do presente, foi abrindo, bem devagar, uma pálpebra e a tampa da caixa.
Suas expectativas foram frustradas ao ver um molar cariado de uma criança. Quem teria guardado tal coisa nojenta? Era costume dos pais, em certa época, conservarem dentes de leite sãos como recordação saudosa dos filhos. Por que guardar um dente cariado?
Letras minúsculas escritas na tampa desafiaram sua curiosidade. Com o auxílio de uma lupa, sorriu ao ler um conhecido ensalmo: mourão mourão pega meu dente podre e me dá meu dente são.
A escrita mostrava que aquela caixinha pertencera a uma criança que o transformara em brinquedo, sem temer a maldição de ter dentes tortos e fracos.
Ocorreu-lhe a ideia de que, talvez, a tenha amarrado ao teto como isca para surpreender o Mourão assim que pegasse a caixa. Há crianças que desejam ver o Papai Noel. Aquela queria ver o temível espírito boticário.
Os adultos que lhe ensinaram a prática do ensalmo deveriam ter dito que o Mourão não aceitava acordos escritos. Um ritual de passagem se faz com firme vontade e palavra jurada.
Olhando a imensidão da enorme sala de estar, percebeu uma presença que enchia toda a casa, usando-a como uma lata de conserva podre prestes a explodir, assim que surgisse qualquer fissura.
Sentiu que, ali, o tempo parecia correr devagar como um remanso de rio: lodento, profundo e misterioso, lugar onde onde a correnteza aprisiona coisas, seres e passados em um limbo inerte.
Nuvens escuras cerraram o horizonte marítimo da janela e um vento frio rodopiou como uma bailarina no centro da sala, impregnando-a de um perfume marítimo familiar: o de Lúcia. Seus pais nunca o perdoariam se soubessem daquele amor clandestino.
A janela da sala fechou repentinamente ecoando no vão escuro um estrondo que trouxe-lhe uma melancolia. Chorou até dormir no útero da poltrona de sua mãe.
Foi despertado da tristeza pachorrenta pelo ressacado. De volta à dor da verdade lembrou que precisava extraí-lo e à casa. O coração palpitou, a boca ficou seca, mãos e joelhos começaram a tremer e um forte desejo de fugir o possuiu.
A jóia cariada lhe sugeriu pagar a dívida do ritual. Correu até a entrada da casa, virou de costas, fechou os olhos, pronunciou o ensalmo, jogou o dente no telhado e pediu ao Mourão que o siso caísse e o velho solar não fosse demolido.
Doendo o dobro, a dor do siso lhe fez ver novas constelações cujas estrelas o agarraram pelo pescoço, pernas, cabelos, barba,boca e língua em espiral de gozo que a tudo animou e tornou possível.
Usando a porta de cedro como tapete voador, deslizou nos ares com suas sete amantes, enquanto fugia do fogão e da cristaleira que o perseguiam, como crianças, brincando de pega – pega.
As estrelas, propuseram-lhe um esconderijo infalível e ensinaram-lhe um caminho que nenhum foguete usava para chegar à casa delas. Subiu por ele numa velocidade maior que a da luz, apesar das estrelas lhe pedirem com insistência que não o fizessem.
Colidiram frontalmente com um corpo celeste e a explosão foi vista a milhares de anos luz do ponto de impacto. Elas dispersaram-se pelas galáxias. Ele foi tragado pela escuridão.
À deriva nos universos, foi deixado na praia de um imenso meteoro, pedaço de um antigo planeta há muito sem nome.
Contrariando a surdez do vácuo, o choro de uma criança lhe fez sair do torpor e ver, à luz dos intermitentes rastros de estrelas, um menino que estava de costas.
— Ei, oi, garoto, por que você está chorando?
— Por que você não deixa eu ir embora? Por que você é tão mau assim? Vá embora e me deixe ir.
— Mas eu não estou entendendo. Quem é você? Eu não sei onde estou. Como poderia prender você?
— É só você dizer que me deixa ir. Diga, diga.
— Tudo bem, mas antes você pode me dar um abraço?
No clarão de um cometa que passou, José Firme viu o rosto esquecido de um menino: o seu.
— Eu deixo você ir, eu deixo você ir, eu deixo, eu deixo….
Depois da paz daquele abraço, abriu os olhos em uma rua que tinha, como únicas luzes, velas que clareavam a entrada de uma casa, sem pingar lágrimas pela mulher que gemia e suplicava socorro em seu interior.
Apressado em socorrê-la, tomou uma delas e entrou. Embora forte, a chama só iluminava o espaço imediatamente à frente dos seus passos, sempre distantes daquela que queria acudir.
Exausto, sentou-se no chão que podia ver e pôs-se a chorar, o que o farol não conseguia, até o último pedaço de pavio.
Apagado e imerso, sentiu um impulso involuntário de abrir os pulmões e acender a chama dos olhos. Sua visão desenhou dimensões, formas e direções de um espaço frio onde onde homens de verde chamavam uma mulher de volta à vida.
Em um último esforço,as pupilas fatigadas dela miraram as dele em um sorriso de despedida.
— José, não tenha medo de soltar minha mão. Você pode voar sozinho.
— Mamãe! Mamãe! Mamãe…
— Senhor José. Senhor José. Acalme-se. Acorde. Acorde.
Os olhos da assistente social Mariana adoçaram a sua queda no leito de hospital. Os músculos estavam fatigados e as escoriações só não ardiam mais do que a boca seca.
— O senhor está bem. Escapou da morte por um milagre.
— O que houve? Como vim parar aqui?
— O senhor saiu de sua casa antes que ela explodisse.
— Como assim “explodisse”? Meu Deus! Aquela casa é a minha vida, meu mundo! Para onde eu vou, moça?! Eu preferia ter morrido! Há quanto tempo estou aqui?
— Nesta enfermaria desde ontem. Na UTI o senhor esteve por três meses.
Num choro tranquilo, Zé Firme passou pela memória todos os fatos que recordava e não encontrou nenhuma falha que pudesse ter causado a explosão. Não deixou eletrodomésticos ligados, fechou o registro do botijão depois do café e o armário onde Claudete guardava produtos de limpeza era arejado e distante do fogão.
Com a experiência de quem já cuidou de muitos casos de sobreviventes, Mariana respondeu-lhe:
— A polícia está investigando a explosão e até hoje não conseguiu encontrar as causas
— E Claudete, minha empregada? O que houve com ela?
— No trabalho de buscas só o senhor foi encontrado e no de recolhimento dos destroços nenhum corpo foi encontrado.
Antes que ele formulasse a próxima pergunta, ela o respondeu como se lesse pensamentos:
— Desde a explosão, uma seguradora tem cuidado de todas as suas despesas. Tudo o que restou da casa está neste envelope.
Do envelope pardo, com a logomarca da seguradora Faraco e Firme, retirou uma foto da família e uma caixa de jóias bem maior que aquela que segurava antes de apagar.
Seguindo o protocolo de entrega, a assistente social pediu que conferisse o conteúdo dela. Cumprindo a burocracia, abriu-a e, para o seu pasmo, o siso rachado de um adulto, a chave de um cofre e um pedacinho de papel enrolado repousavam em seu interior.
Desenrolando a tirinha de papel, semelhante aos recados de biscoitos chineses, leu estes dizeres: Gujaôa, pequeno Sabiá. É hora de retornar à grande casa das moscas.
Após a alta, José Firme viajou sozinho para a quinta dos Reriú, terra de seus ancestrais. Em outra velha casa, mãe da que explodira, um cofre o aguardava com seus segredos.

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Leandro Costa

Francisco Leandro Costa, cearense de Santana do Acaraú, é enfermeiro e autor de poemas e contos publicados em diversos periódicos e antologias do país, dentre estas as do Selo Off Flip 2021. Seus textos trazem uma voz narrativa inspirada nas lendas, mitos, memórias e histórias de seu povo, bem como nas situações cotidianas mais ordinárias.

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