7ª edição – Artigo: “Clarice nos ajuda a lembrar dos problemas da clareza…” por Lucas Salgueiro Lopes
Clarice nos ajuda a lembrar dos problemas da clareza…
Lucas Salgueiro Lopes
“Estou sentindo uma clareza tão grande / que me anula como pessoa atual e comum: / é uma lucidez vazia, como explicar?”. Sem dúvidas, é mesmo difícil de explicar tal sentimento que Clarice Lispector descreve em seu poema “A lucidez perigosa”, de 1972. Mas, o que um primeiro olhar menos atento não conseguiria prever, é que esse poema tem mais a dizer sobre os dias atuais do que imaginávamos. Tal sensação, provavelmente não vem por uma intencionalidade futurística da escritora, mas, sobretudo, pela irresistível familiaridade que nos remete a uma das maiores angústias de nossos tempos: os problemas da clareza.
Quando pensamos numa sociedade tomada pela “clareza”, poderíamos ter como uma primeira referência o movimento cultural-filosófico do Iluminismo, que encontrou seu auge na França do século XVIII (conhecido como “Século das Luzes”) e gerou uma forte onda de ideias de liberdade e combate ao absolutismo naquele contexto. Mas esse ainda não seria o momento da “sociedade da clareza” que vivemos hoje. A filosofia do movimento, além de não tocar nos pontos centrais que trataremos aqui, logicamente, não se alastrou instantaneamente por todos os estratos sociais e por todos os cantos da Terra.
Assim, é importante lembrar também que ainda estamos falando de uma sociedade disciplinar naquele contexto. As sociedades disciplinares, situadas por Michel Foucault nos séculos XVIII e XIX, com auge no início do século XX, são marcadas pelos grandes meios de confinamento e pelo objetivo de domesticar o corpo. Imagine uma prisão com seus diversos estereótipos: esse é o modelo de sociedade que se tinha! Durante boa parte da vida, os indivíduos passavam de um espaço fechado para outro: se inicia pela família, depois a escola, a caserna, a fábrica, passa pelo hospital, podendo chegar até mesmo a própria prisão. Todos lugares fechados, mas que, até mesmo Foucault, sabia que estavam com seus dias contados.
Essa vida regida pela disciplina, disposta num ambiente escuro e sombrio, no entanto, cada vez mais se transportava para um “espaço iluminado”. Para outro filósofo francês, Gilles Deleuze, para depois da Segunda Guerra Mundial, não éramos mais uma sociedade disciplinar: chegávamos à sociedade do controle. Nessa, Deleuze diz que há uma “crise generalizada de todos os meios de confinamento”, mas não um fim da dominação; seguimos sendo controlados, mas agora, sobre uma aura de liberdade. Tudo é mais fluido e passa a ser mais claro; mas isso nos faz enxergar melhor e viver mais livre? Clarice responde:
“Estou por assim dizer / vendo claramente o vazio. / E nem entendo aquilo que entendo”. Tal sentimento, como destaca outro filósofo, Byung-Chul Han, vem dessa sociedade do controle, onde somos controlados por um novo tipo de panóptico: o digital, onde, ilusoriamente, todos nós imaginamos ter total liberdade, dada a ligação em redes entre os indivíduos e as inúmeras formas de comunicação. Mas, consequentemente, como lembra Han, nesse novo tipo de supervisão “é possível ser iluminado e tornado transparente a partir de todos os lugares, por cada um”. Toda essa “clareza” e excesso de possibilidades para nos comunicar, não nos faz comunicar melhor! A sociedade do controle se torna uma sociedade da transparência, que é uma sociedade da informação que não consegue informar: quanto mais claro, menos vemos. Como diz o filósofo: “a sociedade da transparência é opaca”.
“Além do que: / que faço dessa lucidez? / Sei também que esta minha lucidez / pode-se tornar o inferno humano”. Fica difícil saber o que fazer no meio do turbilhão: mais informação e mais comunicação não clareiam o mundo, ou, como destaca Han: “a hiperinformação e a hipercomunicação não trazem luz à escuridão”. Não à toa, Clarice nos lembra que toda “lucidez” pode vir a se tornar o nosso inferno humano. Ora, o “inferno humano” nada mais poderia ser do que um lugar sem prazeres, como é, por excelência, a sociedade da transparência. O prazer requer a sedução, do qual fazem parte o mistério, a fantasia. A transparência é simplesmente pornográfica. Em torno de todos os aspectos do social, achamos enxergar tudo, mas não vemos nada; o controle se faz pela universalidade do desnudamento. Como nos alerta Clarice: “essa clareza de realidade / é um risco”.
Como Deleuze destaca, não devemos perguntar qual sistema é “mais duro”, a passada sociedade da disciplina ou a atual sociedade do controle; ambas tem seus problemas, onde, entre liberações e sujeições, vamos experimentando sentimentos de angústia, confusão e vazio. Han diria para nos alertarmos: toda essa luz que causa a transparência da nossa sociedade contemporânea não é, necessariamente, proveitosa. Clarice, em toda sua sensibilidade sobre o íntimo, nos indica, como caminho último, uma forma de rogação: “Ajudai-me a de novo consistir / dos modos possíveis. / Eu consisto, / eu consisto, / amém.”.
Indicações & Referências:
Byung-Chul Han – “Sociedade da Transparência” (livro).
Clarice Lispector – “A lucidez perigosa” (poema).
Gilles Deleuze – “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” (texto).