A desconhecida

Quando ela chegou, não me lembro. Só sei que ficou sem pedir pra ficar.

Desconfiada, trazia no olhar uma carga de sofrimento, uma certa penúria, um ar de infelicidade constante. Não sei se por medo ou se era seu jeito de ser, não permitia que ninguém a tocasse. Era incapaz de aceitar qualquer afago.

Apareceu e foi ficando, como se já fosse dali desde que nasceu. Mas não era. Não sei de onde veio nem por que ficou. Coisas da vida. Cada um tem sua razão de ser e seu modo de viver. Há coisas que não se deve perguntar. No caso dela, não tinha como perguntar. E duvido que ela respondesse, se pudesse, pois tinha um jeitão fechado, na dela. Não dava satisfação a ninguém. Bem que ela tinha um amigo. Talvez conversassem e se entendessem lá entre eles, mas comigo mesmo era muito reservada.

Não era fácil defini-la à primeira vista. Mas o tempo, ah o tempo, este sim é capaz de nos fazer entender os mistérios da vida. Talvez fosse tímida, ou medrosa, ou preguiçosa. Na verdade, era um misto de tudo isso – imperfeita como qualquer um. Às vezes me fazia rir, às vezes me irritava… Aos poucos fomos nos entendendo. Acho que ela me entendeu primeiro.

A verdade é eu já sabia quando ela estava com fome, com sede, com medo, cansada, com preguiça… e até já sabia quando ela queria entrar para a varanda antes mesmo de a chuva chegar. Ficava ali, no pé do portão, me olhando com aqueles olhos tristes como se tivesse vivido e sobrevivido a todos os infernos possíveis. Era impossível resistir àquele olhar. Seria esperteza dela? Não sei. Só sei que eu abria o portão e ela se aconchegava em um canto qualquer, e de lá só saía quando sentia vontade.

Mas eu não sabia qual o nome dela, então dei-lhe um nome: Amiguinha. Não se pode conviver com alguém que não tenha nome. Acho que ela gostava de ser chamada assim. Após isso, senti que ficamos mais próximos, nos entendíamos melhor, a comunicação ficou mais fácil.

Nos últimos dias a notei mais triste, sem ânimo. Não quis comer. Apenas me olhava com aquele olhar de sofrimento. Tentei ler sua expressão, mas não fui capaz de decifrá-la. Ou não tentei o suficiente. Ela parecia assim todos os dias…

Ontem, ao chegar em casa, lá estava ela deitada na minha calçada, inerte.

– Está morta – disse uma vizinha. – Parece que foi envenenada.

Mesmo triste, fiquei feliz por ela ter vivido seus últimos momentos na minha calçada, pois era ali que a Amiguinha, a desconhecida, se sentia em casa.

Nunca mais ouvirei os seus latidos, no entanto jamais esquecerei daquele olhar.

João Rodrigues

 

 

 

Imagem: https://pixabay.com/pt/vectors/cachorro-bicho-de-estima%c3%a7%c3%a3o-animal-47127/

Imagem de Clker-Free-Vector-Images por Pixabay

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