Cinco escritores com quem eu gostaria de conversar. Parte V – Machado de Assis

Machado de Assis

Sentado na Biblioteca Pública de Porto Alegre, envolto no silêncio, imerso no mais típico ambiente neoclássico, eu pensaria que voz o mestre dos mestres teria. A impassibilidade das colunas dóricas da decoração contrastariam com a minha ansiedade por receber o maior escritor brasileiro de todos os tempos. E se ele gaguejasse demais eu não conseguisse entendê-lo? E se ele tivesse um ataque epiléptico? Eu resolveria levar minha ansiedade ao extremo criando uma cena imaginária em que eu perguntaria: vem cá, Machado, afinal Capitu traiu ou não traiu? Só de pensar nisso, ficaria vermelho. Fecharia os olhos por alguns segundos e, quando os abrisse, um senhor muito baixinho de cartola e paletó surgiria à minha frente, em silêncio. Machado de Assis. Eu não conseguiria esconder a minha devoção e, com a garganta coçando com vontade chorar, faria sinal para que ele se sentasse à minha frente. Me faltaria coragem, nos primeiros instantes, para olhar em seus olhos. Assim que o fizesse, no entanto, encontraria um simpático senhor a me sorrir de leve.

Sua voz seria frágil, fraca, quase inaudível, mas mesmo assim firme. Eu perguntaria sobre sua viagem até Porto Alegre e ele responderia que havia adorado a experiência. Eu diria então que ele deveria viajar mais vezes, pois, pelo que sabia, ele havia saído uma única vez do Rio de Janeiro. Ele responderia com um sorriso meio acanhado, balançando a cabeça afirmativamente várias vezes. Eu então contaria a história daquele prédio e diria para ele observar os bustos que enfeitam a fachada, todos eles de grandes vultos das artes e da ciência. Machado responderia que sim, que faria isso, mas só depois de dar uma bela vasculhada no acervo do local. Ficaríamos ali um bom tempo conversando sobre os autores gaúchos, com especial atenção aos simbolistas. Aliás, eu inclusive, haveria de lhe dar de presente um exemplar de “A Divina Quimera”, de Eduardo Guimarães.

Logo em seguida o assunto iria em direção às inúmeras obras de aterro pelas quais Porto Alegre havia passado ao longo de sua história, momento em que eu compararia a capital gaúcha com a velha Rio de Janeiro. Eu diria a Machado que ele simplesmente não acreditaria – ou melhor, acreditaria – no quanto a topografia original da cidade foi alterada em direção ao Rio Guaíba. Ele então, me daria uma espécie de aula sobre todas as transformações que sua velha cidade da infância havia passado. No meio dessas explicações, uma intensa gagueira se instauraria, o que lhe deixaria nervoso.  Ficaríamos muito tempo falando sobre isso.

Logo em seguida nós nos levantaríamos e iríamos até a janela. Então eu mostraria para ele o Palácio Piratini, a Assembleia Legislativa, a Catedral Metropolitana e a Praça da Matriz. Arriscaria, então, um clichê machadiano: aqueles lugares, que nada mais eram do que casas do povo, na verdade eram palco das mais insólitas disputas por poder, cobiça e um antro de vaidade e hipocrisia humana. Então, eu arriscaria mais um pouco: certamente Brás Cubas anda por ali, Machado. Ele, então, me olharia surpreso, me pegaria pelo braço e daria uma intensa gargalhada, que eu nunca conseguiria decifrar se seria uma concordância com que eu havia dito ou uma espécie de deboche ou repreensão. De qualquer forma, eu havia conseguido fazer Machado de Assis rir, e isso já me valeria uma vida inteira.

Em seguida nós ficaríamos um enorme tempo percorrendo em silêncio as estantes da biblioteca. Machado, sempre curioso, folhearia os volumes. Se deteria com muita atenção na seção histórica e me prometeria que iria estudar com afinco sobre a Revolução Farroupilha. Então, ele chegaria na parte destinada à literatura brasileira e encontraria inúmeros exemplares de sua própria obra. Ele pegaria um dos seus volumes de suas obras completas da Nova Aguilar, folhearia e me perguntaria por que uma letra tão pequena e um papel tão fino. Quem consegue ler algo assim tão minúsculo?, me perguntaria Machado. Eu ficaria sem resposta. Ele largaria o livro na estante, com um pouco de descontentamento.

Nitidamente cansado ele se despediria de mim, dizendo que seu tílburi já o estava esperando. Ciente de que não havia mais como segurar Machado de Assis por mais tempo, eu resolveria me despedir dizendo que aquele havia sido um dos momentos mais mágicos de toda a minha vida. Ele apertaria com muita força as minhas mãos e, sim, mais uma vez sorriria. Os vermes que roessem as minhas carnes com certeza roeriam carnes mais felizes, pois roeriam as carnes de um homem que conversou com Machado de Assis.

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/illustrations/homem-brasil-

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