Dar aulas de português já me deu muitas alegrias – amo a língua que eu falo, que eu ouço, em que escrevo, amo a literatura que se construiu com ela, as músicas que nasceram dela, mas, às vezes, ser professor de língua portuguesa me trouxe alguns constrangimentos e, até, alguns aborrecimentos.
Me lembro de uma vez, há muito tempo, em que eu fui a uma loja de eletrodomésticos comprar uma geladeira e, depois de escolher o produto, sentei diante da vendedora, muito simpática, que começou a me fazer perguntas para preencher a mão um interminável e super detalhado formulário para que eu fizesse jus ao crediário. Era assim naquela época.
Depois de um tempo, chegamos à esquina perigosíssima do questionário:
– Profissão?
– Professor.
– De quê?, perguntou ela ressabiada.
– De português!
A moça atirou-se sobre a prancheta, tapando-o para que eu não o visse.
– Eu sempre fui péssima em português. Não olhe pra isso. Depois eu passo a limpo, com a máquina. Na Máquina. À máquina! Com crase?
Em outra ocasião, um amigo, bêbado, depois de desabafar horas sobre a esposa que o largara, merecidamente, e de decretar que não entendia as mulheres (se nem Freud conseguiu…), agarrou-me pelo pescoço, puxou-me pra bem perto dele e com bafo de cana, vociferou:
– Pior que elas só o predicado verbo-nominal!
Às vezes, alguém me pede ajuda. Outro dia, no prédio, fui abordado por uma vizinha, enquanto esperávamos o elevador.
– Meu filho está louco com a minha neta.
– O que ela fez?
– Está em recuperação de português.
Lá vem, pensei cá com meu botão.
– Não consegue identificar o tal do sujeito. Que dirá classificar esse treco.
Depois de um silêncio.
– Pra que serve esse negócio de sujeito que vocês inventaram, hein?
Não rebati a acusação. O elevador chegou, entramos calados, os dois sob o peso opressivo da pergunta. Deixei a vizinha entrar antes de mim e se colocar no fundo da cabine e me postei de costas pra ela, na frente, de cara pra porta pantográfica. Senti seu olhar inquiridor esquentando minha nuca, mas não reagi.
Desci no meu andar, o quarto, e a deixei, em silêncio e sem resposta.
É por essas e outras que, de uns tempos pra cá, só me apresento como professor de português em ocasiões muitos especiais. Como fazem os médicos, no avião, quando um passageiro tem um piripaque.
– Afastem-se, por favor. Eu sou médico.
Quando a falta da crase pode causar um acidente, uma palavra errada pode gerar discussões violentas ou uma vírgula mal colocada pode dar em assassinato, saio do armário e me revelo:
– Afastem-se por favor. Eu sou professor de português.
Ponho o acento que falta, mudo a vírgula de lugar, apresento um sinônimo adequado, conserto um errinho ortográfico e saio do local sob aplausos, depois de salvar o mundo com a minha caneta vermelha, mais uma vez.
Depois, volto ao anonimato que me faz tão bem.


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