@revistaentrepoetas / @professorrenatocardoso

,

27 cliques

Projeto 16 horas – Edição Set.25 – Crônica – “Ri melhor quem ri primeiro” – Cristina Vergnano

Ponte Rio-Niterói, sentido norte fluminense. Tarde de sexta-feira, um pouco depois do horário do almoço. Trânsito lento, claro. Quando se tem de fazer uma viagem para visitar a família, passando pela mesma rota de tantos veranistas rumo à Região dos Lagos, é sempre uma angústia. Não importa se são férias, feriado, fim de semana prolongado ou ordinário. Bastam calor e sol para gerar o fluxo intenso e as consequentes retenções, que, agora, começam desde cedo às sextas. Impossível evitar a pergunta: “esse povo todo não trabalha, não?” Mas suponho que, depois do advento do home office, tudo ficou mais elástico. Afinal, é possível trabalhar on-line tanto no Rio, quanto em Saquarema, Cabo Frio, Búzios ou Rio das Ostras; no próprio apartamento ou na casa de praia.

O jeito é relaxar, aproveitar a vista e os detalhes. Costumo apreciar o voo das gaivotas, sua incrível permanência estática no ar, como se suspensas por um fio ou apoiadas numa plataforma invisível. Não admira, observando seu dom natural, que o ser humano sempre tenha ambicionado voar. Também vejo ocasionais pousos precisos de aviões na curta pista do Santos Dumont, as barcas cruzando entre a Praça XV e Niterói, algum veleiro, os muitos rebocadores, o contorno montanhoso carioca, com destaque para o Corcovado e o Pão de Açúcar, a Ilha Fiscal, com a memória do último baile do império, e a boca da baía da Guanabara, confundida, no passado, com foz de rio.

O sobressalto com o baque das motos contra o nosso retrovisor interrompe a contemplação. Fazer o quê? A vida não para, correr é preciso e quem opta pelas motocicletas é mais esperto, leva vantagem (afinal, a lei de Gérson tem mil e uma utilidades).

Passado o susto, continuo a me distrair, espiando os diferentes carros, seus ocupantes e cargas. Nesse dia, chamou minha atenção uma mensagem inusitada num adesivo preso ao para-brisas traseiro de um automóvel à nossa frente.

Recém habilitada. Se buzinar, fico nervosa e deixo o carro morrer. Seja paciente.”

Vocês acharam hilário? Eu, em certa medida, tendo em vista o insólito da mensagem, também. Surpresa maior, contudo, veio a seguir. Imaginem o efeito, considerando a humilde e jocosa confissão, da costurada super ágil executada pela tal motorista, rompendo as brechas apertadas na massa de veículos, saindo da extrema esquerda para a extrema direita. Tudo num zás-trás! Nada inexperiente, certo? Assumindo haver algum traço de veracidade no texto do para-brisas, só podemos agradecer o fato de ninguém ter buzinado. Caso contrário, poderia ter-se instaurado um caos bem maior.

O incidente me remeteu à máxima: faço piada da minha desgraça antes de outros rirem. Implícito na mensagem estava o preconceito contra mulheres ao volante, cuja direção, segundo as más línguas, seria marcada pela falta de competência. Ao usar a primeira pessoa e o feminino, a autora assumia a suposta limitação, solicitava indulgência e calava, assim, os maledicentes. Qual a graça de debochar de mim, se eu mesma faço a piada? Sacada genial da moça!

Ao longo da vida, vi muitas frases igualmente sugestivas. De modo geral, sua comicidade esconde uma crítica e um desafio bem-humorado. É quase como uma resposta antecipada ao preconceito, que aproveita uma ideia estereotipada para desfazer de quem é diferente. No entanto, de repente, não me lembro de nenhuma.

Peço vênia. A idade me favorece essa liberdade, concordam? E, assim, eis que me despeço de vocês e concluo, a exemplo da motorista gozadora (e com a sua licença), fazendo pilhéria da minha própria pessoa. Por que não?



Nota da autora:

Esta crônica é a versão revisada da publicada em 23/10/2024, na Entre Poetas & Poesias , perdida com a migração para o novo site.


Descubra mais sobre Revista Entre Poetas & Poesias

Assine gratuitamente para receber nossos textos por e-mail.

2 respostas para “Projeto 16 horas – Edição Set.25 – Crônica – “Ri melhor quem ri primeiro” – Cristina Vergnano”.

  1. Avatar de coutmoni
    coutmoni

    Muito bom! Mas eu imaginei uma outra explicação: não era ela ao volante nesse dia. Muito bom ler seus textos, os detalhes,compartilhar seu olhar!

    Curtir

    1. Avatar de Cristina Vergnano

      Verdade… Não deu pra ver quem dirigia. Bem podia ser outra pessoa. Em todo o caso, a frase deu margem à reflexão, o que é sempre válido.Obrigada pela leitura e pelo comentário. É sempre bom ter você por aqui. Abç.

      Curtir

Deixar mensagem para coutmoni Cancelar resposta

Sobre

Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

Com uma equipe formada por escritores de diferentes idades e áreas do conhecimento, buscamos sempre oferecer conteúdo de qualidade, promovendo o diálogo entre gerações e perspectivas diversas.

Se você deseja ter seu texto publicado, envie sua produção para:
revistaentrepoetasepoesias@gmail.com

Acesse: www.entrepoetasepoesias.com.br
Siga no Instagram: @revistaentrepoetas / @professorrenatocardoso
Canal no WhatsApp: Clique aqui para entrar

PESQUISA