Ponte Rio-Niterói, sentido norte fluminense. Tarde de sexta-feira, um pouco depois do horário do almoço. Trânsito lento, claro. Quando se tem de fazer uma viagem para visitar a família, passando pela mesma rota de tantos veranistas rumo à Região dos Lagos, é sempre uma angústia. Não importa se são férias, feriado, fim de semana prolongado ou ordinário. Bastam calor e sol para gerar o fluxo intenso e as consequentes retenções, que, agora, começam desde cedo às sextas. Impossível evitar a pergunta: “esse povo todo não trabalha, não?” Mas suponho que, depois do advento do home office, tudo ficou mais elástico. Afinal, é possível trabalhar on-line tanto no Rio, quanto em Saquarema, Cabo Frio, Búzios ou Rio das Ostras; no próprio apartamento ou na casa de praia.
O jeito é relaxar, aproveitar a vista e os detalhes. Costumo apreciar o voo das gaivotas, sua incrível permanência estática no ar, como se suspensas por um fio ou apoiadas numa plataforma invisível. Não admira, observando seu dom natural, que o ser humano sempre tenha ambicionado voar. Também vejo ocasionais pousos precisos de aviões na curta pista do Santos Dumont, as barcas cruzando entre a Praça XV e Niterói, algum veleiro, os muitos rebocadores, o contorno montanhoso carioca, com destaque para o Corcovado e o Pão de Açúcar, a Ilha Fiscal, com a memória do último baile do império, e a boca da baía da Guanabara, confundida, no passado, com foz de rio.
O sobressalto com o baque das motos contra o nosso retrovisor interrompe a contemplação. Fazer o quê? A vida não para, correr é preciso e quem opta pelas motocicletas é mais esperto, leva vantagem (afinal, a lei de Gérson tem mil e uma utilidades).
Passado o susto, continuo a me distrair, espiando os diferentes carros, seus ocupantes e cargas. Nesse dia, chamou minha atenção uma mensagem inusitada num adesivo preso ao para-brisas traseiro de um automóvel à nossa frente.
“Recém habilitada. Se buzinar, fico nervosa e deixo o carro morrer. Seja paciente.”
Vocês acharam hilário? Eu, em certa medida, tendo em vista o insólito da mensagem, também. Surpresa maior, contudo, veio a seguir. Imaginem o efeito, considerando a humilde e jocosa confissão, da costurada super ágil executada pela tal motorista, rompendo as brechas apertadas na massa de veículos, saindo da extrema esquerda para a extrema direita. Tudo num zás-trás! Nada inexperiente, certo? Assumindo haver algum traço de veracidade no texto do para-brisas, só podemos agradecer o fato de ninguém ter buzinado. Caso contrário, poderia ter-se instaurado um caos bem maior.
O incidente me remeteu à máxima: faço piada da minha desgraça antes de outros rirem. Implícito na mensagem estava o preconceito contra mulheres ao volante, cuja direção, segundo as más línguas, seria marcada pela falta de competência. Ao usar a primeira pessoa e o feminino, a autora assumia a suposta limitação, solicitava indulgência e calava, assim, os maledicentes. Qual a graça de debochar de mim, se eu mesma faço a piada? Sacada genial da moça!
Ao longo da vida, vi muitas frases igualmente sugestivas. De modo geral, sua comicidade esconde uma crítica e um desafio bem-humorado. É quase como uma resposta antecipada ao preconceito, que aproveita uma ideia estereotipada para desfazer de quem é diferente. No entanto, de repente, não me lembro de nenhuma.
Peço vênia. A idade me favorece essa liberdade, concordam? E, assim, eis que me despeço de vocês e concluo, a exemplo da motorista gozadora (e com a sua licença), fazendo pilhéria da minha própria pessoa. Por que não?
Nota da autora:
Esta crônica é a versão revisada da publicada em 23/10/2024, na Entre Poetas & Poesias , perdida com a migração para o novo site.


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