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Tá lá um corpo estendido no chão

Vi, de longe, a luz do carro da polícia. Mais perto, percebi a ambulância e, logo atrás, o rabecão dos bombeiros. A pequena multidão em volta não deixava dúvidas: havia um morto no meio-fio, bem no meio da tarde de Copacabana.

Os motoristas que passavam nos carros esticavam-se para ver o defunto, e o trânsito ia ficando cada vez mais engarrafado. Pessoas atravessavam a rua de celular em punho para fotografar o homem que jazia no chão daquela rua tão movimentada. Alguém trouxe um lençol e cobriu o corpo, acabando com o espetáculo macabro que atraía gente de todas as idades. Ficara de fora do embrulho fúnebre apenas um dos pés, descalço e sujo.

Alguém perguntava aflito aos que tinham chegado antes:

– Foi atropelado ou foi tiro?

Uma mulher que passava com sacolas:

– Não sabia que aqui tinha disso. Na minha área é todo dia, nem ligo mais.

Fui para o outro lado da rua, tentando driblar, sem sucesso, a morte. De soslaio, vi o corpo coberto, os rostos impávidos dos bombeiros e dos policiais, acostumadíssimos a cenas como aquela, as expressões dos transeuntes em volta e tentei entender o que fazia aquela pequena multidão que velava, barulhenta, o cadáver.

Não sei se um músico, uma cantora, um mímico, um pastor ou uma bailarina atrairiam tanta gente. Somos curiosos por natureza, eu sei. Se não quiséssemos ver o que havia fora da caverna, do outro lado do rio, atrás das montanhas, estaríamos ainda, acho, andando curvados e comendo carne crua, raízes e tubérculos. Compreendo.

Mas por que faz tanto sucesso um defunto no chão no meio da tarde? De onde vem essa curiosidade mórbida que faz juntar gente em volta de uma pessoa desconhecida e morta? Será que ela é aguçada pelo alívio de não ter sido conosco? Será que tem também uma pitadinha de sadismo nisso? Pergunto porque não foram poucas as pessoas que fizeram menção a levantar o lençol para ver o cadáver em detalhes, mas foram impedidas pelas autoridades no local.

Fico imaginando a vítima segundos antes de morrer. Possivelmente ela passou, na rua, por mim e por aquelas pessoas que agora observam consternadas seu corpo defunto, mas não a notaram quando ela estava viva. Será isso? Ela estava aqui agorinha, com a gente, de pé, andando e falando… Por que ele? Por que agora? Como?

A morte é um mistério, e o defunto é uma amostra grátis dela. Vê-la de pertinho, materializada num cadáver, é como ter certeza de que estamos vivos. Acho que buscamos ver num morto como aquele o que é morrer., e precisamos ver como é o fim para nos assegurarmos de que não foi com a gente e para darmos graças a Deus de ainda estarmos, quem sabe, distantes dele.

A morte nos atrai porque queremos distância dela.


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3 respostas para “Tá lá um corpo estendido no chão”.

  1. Avatar de Pedro Luiz Da Cas Viegas

    Concordo com tudo o que foi dito. Na verdade, é um tema complexo e foi bem abordado no texto. Abraço.

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  2. Avatar de Rui Dias De Carvalho
    Rui Dias De Carvalho

    Arnaldo é um cronista de mão cheia.

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  3. Avatar de Rui Dias De Carvalho
    Rui Dias De Carvalho

    Arnaldo é um cronista de mão cheia. ” A morte nos atrai porque queremos distância dela” um belo fechamento. Sou fã de crônicas. Parabéns!

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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

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