Lançado originalmente em folhetins em 1911 e reunido em livro em 1915, Triste Fim de Policarpo Quaresma, do escritor carioca Lima Barreto, é uma das obras mais contundentes da literatura brasileira. Situado no conturbado período da Primeira República, o romance atravessa as fronteiras do tempo ao refletir sobre os vícios sociais, as falácias do poder e as frustrações do idealismo nacionalista. Mais de um século depois, continua sendo leitura essencial para quem deseja compreender as raízes e os dilemas do Brasil moderno.
A trajetória de um patriota incompreendido
O romance acompanha o Major Policarpo Quaresma, um servidor público metódico, erudito e apaixonado pelas coisas do Brasil. Sua vida é guiada por um nacionalismo ingênuo e intransigente, que o leva a adotar uma série de atitudes inusitadas – e perigosas. O protagonista acredita que o país pode se redimir de seus problemas por meio de uma valorização radical da cultura nativa. Como símbolo desse projeto, propõe nada menos que a adoção do tupi-guarani como língua oficial. O resultado é trágico: considerado louco, acaba internado num hospício.
Longe de esmorecer, após a alta, Quaresma se refugia em um sítio no interior do Rio de Janeiro, onde pretende viver da terra e mostrar que o Brasil tem potencial agrícola autossustentável. Mas suas tentativas de cultivar e viver em harmonia com a natureza esbarram na realidade dura do campo: pragas, burocracia, corrupção e abandono estatal. Mesmo diante de tantos fracassos, Quaresma insiste em contribuir com a pátria. Seu envolvimento na Revolta da Armada, como defensor do governo Floriano Peixoto, acaba por selar seu destino: acusado de traição, é condenado ao fuzilamento.
Entre o sonho e o desencanto
O que torna Triste Fim de Policarpo Quaresma uma obra literária tão poderosa é a habilidade de Lima Barreto em transformar a jornada de seu protagonista em alegoria. Quaresma não é apenas um personagem: ele é a personificação de um idealismo romântico e quase religioso que não encontra eco na realidade. Seu patriotismo exacerbado, sustentado por anos de estudos solitários e leituras, revela-se incompatível com a lógica clientelista e excludente das instituições brasileiras da época. É um “Dom Quixote tropical”, que luta contra moinhos de vento enfeitados com bandeiras verde-amarelas.
A biblioteca do personagem, descrita como um verdadeiro templo do saber nacional, é o símbolo maior de sua devoção ao país. A leitura, longe de abrir-lhe os olhos para as contradições do mundo, o afasta da realidade. Ele ama uma nação idealizada, que só existe no papel — e quando se confronta com a verdadeira face do Brasil, marcada por injustiças sociais, corrupção e violência, o choque é brutal.
O Brasil real, nu e cru
O romance de Lima Barreto não poupa a sociedade brasileira: políticos oportunistas, militares autoritários, burocratas inúteis e uma população apática compõem o retrato de um país que ainda engatinha em sua república. A crítica à estrutura estatal é contundente e, por vezes, dolorosa. Barreto denuncia o elitismo e a marginalização das classes populares com a acidez de quem viveu na pele os preconceitos de sua época.
O autor também propõe encontros reveladores entre mundos distintos. Um dos episódios mais simbólicos é a amizade entre Quaresma e Ricardo Coração dos Outros, um seresteiro simples, músico das modinhas suburbanas. A relação entre o intelectual e o artista popular rompe barreiras sociais e mostra que a cultura brasileira é diversa e complexa, unindo saberes eruditos e populares em uma mesma identidade. Essa valorização do hibridismo cultural antecipa um dos pilares do modernismo que viria anos depois com a Semana de Arte Moderna.
Pré-modernismo ou já modernismo?
Classificada como uma obra pré-modernista, Triste Fim de Policarpo Quaresma muitas vezes ultrapassa essa delimitação. Embora tenha sido escrita antes da Semana de 1922, antecipa várias das preocupações estéticas e temáticas que os modernistas iriam abraçar: o nacionalismo crítico, o uso de linguagem coloquial, o retrato das mazelas sociais, a mistura entre o trágico e o cômico.
A figura de Lima Barreto, aliás, já era polêmica em seu tempo. Militante republicano, abertamente crítico das elites e simpatizante de ideais progressistas, o autor usava a literatura como ferramenta de intervenção social. Sua visão de Brasil é, ao mesmo tempo, desencantada e esperançosa. Por isso mesmo, o destino trágico de Quaresma é tão simbólico: ele é punido não por seus crimes — pois não os comete —, mas por sua insistência em sonhar com um país melhor.
Atual e necessário
O maior mérito de Triste Fim de Policarpo Quaresma talvez seja sua atemporalidade. Ainda hoje, a obra ressoa com força. Quantos brasileiros, idealistas ou não, já se viram frustrados ao tentar mudar a realidade? Quantos ainda são tratados como “loucos” por acreditarem na honestidade, na justiça ou no potencial de transformação da cultura nacional?
A escrita de Lima Barreto é direta, irônica, rica em observações sociais. Embora o livro trate de temas profundos, a narrativa é acessível, envolvente e até mesmo cômica em certos momentos. O autor cria um painel completo da sociedade de sua época, mas que continua dialogando com as estruturas sociais de hoje.
Justiça e sistema penal
O desfecho trágico da vida de Policarpo Quaresma revela uma crítica severa ao sistema judiciário e à forma como o poder é exercido de maneira autoritária e arbitrária no Brasil republicano.
No terceiro e último ato do romance, Policarpo, já desiludido com o fracasso de suas tentativas de regenerar o Brasil por meio da cultura e da agricultura, decide apoiar o governo do Marechal Floriano Peixoto durante a Revolta da Armada, acreditando que está servindo à pátria. No entanto, ao denunciar abusos cometidos por militares e tentar agir com ética no seio do poder, Quaresma é acusado de traição.
Sua prisão e posterior condenação ao fuzilamento não são baseadas em fatos concretos, mas sim na lógica da repressão de um regime ditatorial que elimina qualquer tipo de dissidência — mesmo que essa dissidência venha de um patriota genuíno. Essa parte da obra escancara o quanto o sistema penal pode ser usado como instrumento de poder, em vez de justiça. O processo ao qual Quaresma é submetido não respeita o direito à ampla defesa, tampouco considera sua integridade moral.
O Marechal Floriano, representando o autoritarismo militar, age como juiz e carrasco, ignorando qualquer noção de justiça republicana. A sentença contra Quaresma é uma forma de silenciamento político — e é justamente isso que Lima Barreto denuncia: o Estado que pune não os culpados, mas os que ousam sonhar com mudanças. Nesse sentido, o romance antecipa discussões contemporâneas sobre a seletividade penal, o arbítrio institucional e a criminalização do idealismo.
Papel da mulher na sociedade
Embora os personagens femininos em Triste Fim de Policarpo Quaresma não ocupem o centro da narrativa, eles exercem papéis importantes que resistem, ainda que de forma sutil, ao apagamento feminino característico da época retratada.
Três personagens femininas se destacam na construção dessa temática: Olga, Dona Adelaide e Ismênia.
Olga, afilhada de Quaresma, é uma figura singular dentro da narrativa. Ainda que inserida em uma sociedade patriarcal e casada com um homem autoritário, ela mantém uma postura firme e autônoma. É uma das poucas que compreendem e respeitam as ideias do padrinho — mesmo quando o restante da sociedade o considera insano. Sua presença constante durante a internação de Quaresma e seu apoio emocional mostram uma mulher que pensa criticamente, observando e agindo com empatia e convicção. Além disso, Olga questiona, mesmo que discretamente, o modelo de casamento baseado na subserviência, tornando-se uma personagem de resistência.
Dona Adelaide, irmã de Quaresma, representa o lado afetivo e cuidador da figura feminina. Mais conservadora e vinculada ao espaço doméstico, ela tenta proteger o irmão, principalmente ao dissuadi-lo da ideia de se alistar na Revolta da Armada. Embora inserida em um papel tradicional, sua presença constante e preocupada expõe como as mulheres, mesmo à margem da política e da esfera pública, são pilares emocionais e éticos da família.
Ismênia, por sua vez, simboliza de forma pungente a repressão social e afetiva imposta às mulheres no início do século XX. Vizinha de Quaresma e integrante da família Albernaz, Ismênia vive um noivado de cinco anos com Cavalcanti, até que, quando finalmente o casamento é marcado, o noivo desaparece sem explicações. A jovem, emocionalmente fragilizada, entra em colapso diante do abandono, e sua tristeza é tratada com silêncio e repressão, ao invés de acolhimento. Ismênia não tem voz nem autonomia para questionar o noivo ou reivindicar sua dignidade. O tratamento que recebe evidencia como o sofrimento feminino era ignorado — as emoções da mulher eram vistas como fraqueza ou exagero.
Essas três figuras femininas revelam diferentes dimensões da experiência da mulher naquele contexto: a resistência silenciosa (Olga), a dedicação familiar (Dona Adelaide) e a repressão emocional e social (Ismênia). Juntas, elas ilustram como Lima Barreto, mesmo num romance centrado em um protagonista masculino, denuncia o papel secundário e vulnerável a que as mulheres estavam relegadas — e ao mesmo tempo lhes confere, ainda que de maneira discreta, traços de dignidade, crítica e força.
Considerações finais
Triste Fim de Policarpo Quaresma não é apenas um clássico da literatura brasileira — é um espelho de nossas ilusões e desencantos. Ao acompanhar a jornada de seu protagonista, o leitor é confrontado com questões fundamentais: o que é o verdadeiro patriotismo? Como se constrói uma identidade nacional? Vale a pena lutar contra um sistema que resiste a mudanças?
Recomendo a leitura não apenas como exercício de apreciação estética, mas como um convite à reflexão. Em tempos de discursos nacionalistas vazios, de crises políticas recorrentes e de urgência por justiça social, revisitar Lima Barreto é mais do que uma escolha literária — é um ato de cidadania.


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