O Rio de Janeiro foi escolhido, pela UNESCO, como Capital Mundial do Livro em 2025. Neste mês de junho, de 13 a 22, leitura, livro, seus autores e leitores voltam a ser celebrados, aqui, na Bienal do Livro. É um evento que aproxima quem lê daqueles que produzem literatura, mas, também, põe em diálogo diferentes linguagens, artes e questões.
Talvez tenha sido por isso que me lembrei de um episódio do ano passado, ocorrido em São Paulo, e resolvi reeditar a crônica daquela época. Trata-se da inusitada escolha estilística de um policial civil ao preencher o boletim de ocorrência de um furto à residência. Em vez de seguir o padrão estabelecido para a redação do gênero B.O., optou por fazê-lo sob a forma poética. O delegado de plantão desconsiderou o registro e mandou refazê-lo, a fim de atender às normas da escrita policial e jurídica. As reações dos leitores à reportagem que noticiou o evento, ao contrário, foram bastante favoráveis.
Sem entrar no mérito literário, não resta dúvida: o agente saiu da caixinha e ousou utilizar a criatividade para elaborar um relato diferente dos costumeiros em seu trabalho. No entanto, por mais antipática e limitada que tenha sido a atitude do delegado, cabe dar-lhe certa razão. Isso porque, na vida, nos expressamos por meio de gêneros textuais, possuidores de funções comunicativas específicas, formas preestabelecidas, um conjunto de conteúdos esperados e com determinados suportes de circulação. Há um contrato social e comunicativo que permite reconhecer o objetivo de um texto e atuar conforme. Romper tal acordo pode gerar ambiguidade e falta de entendimento.
Os gêneros literários, ao contrário do B.O., têm a vantagem de incluir, em seu contrato, o jogo. Ou seja, é possível brincar com a linguagem, explorar metáforas e outros recursos e se apropriar de aspectos de diferentes gêneros, produzindo os mais variados efeitos de sentido. Um leitor ingênuo pode, inclusive, ignorar tal característica, construindo sentidos literais e perdendo a riqueza agregada por esse diálogo intergêneros.
Quando lecionava língua espanhola na universidade, perguntei, numa aula, quem seria o coenunciador de “Instruções para subir uma escada”, de Julio Cortázar. Um aluno respondeu que só poderia ser um extraterrestre, justificando-o com o fato de todo o humano reconhecer uma escada e saber como subi-la. O problema da resposta foi a desconsideração do status da obra de Cortázar como literária. Ao tomar ao pé da letra a palavra do título “instruções”, o aluno assumiu o contrato próprio deste gênero, apagando qualquer possibilidade de leitura que envolvesse a subversão e o jogo literários. Dessa forma, a exposição lhe pareceu deslocada e incoerente, a não ser considerando um receptor fora de nosso contexto.
O boletim de ocorrência, por sua vez, é um gênero técnico, produzido no âmbito da segurança pública, com finalidade de registrar crimes e/ou acidentes. Contém dados fornecidos pelas vítimas, demandando posterior inquérito policial para prosseguimento das investigações. Sendo assim, possui uma estrutura pré-definida, com elementos necessários à informação objetiva de sinistros e uma linguagem com jargões profissionais, quando redigido por agentes da polícia. Nosso conhecimento sobre tal conjunto de características é o responsável pelo estranhamento gerado diante da redação do policial paulista.
Na atualidade, estudos de escrita criativa advogam a inclusão de parâmetros mais imaginativos na produção textual em situações cotidianas e profissionais. Essa prática pode representar um refrigério em certos textos áridos e de difícil compreensão. Cabe ter em mente, porém, o risco de determinadas escolhas para a transmissão da mensagem, principalmente se um discurso simbólico, metafórico, subjetivo e com conceitos pessoais de valor for usado de forma indiscriminada. Em contrapartida, o incrível de produzir, consumir literatura e vivenciar eventos como a Bienal é, justamente, promover essa intimidade com um uso criativo da palavra. O literário tanto leva à reflexão sobre a realidade, quanto mexe com o sentimento. Nessa riqueza de fazeres, englobando o mágico, o trágico, o misterioso, o objetivo, o subjetivo, o romântico e várias outras instâncias, vamos além de nossas fronteiras, viajamos, experimentamos e deixamos patente nossa própria constituição como seres humanos.
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Nota da autora: Esta crônica, aqui revisada, havia sido publicada, em sua primeira versão, no dia 10 de junho de 2024, na Entre Poetas & Poesias. Volto a publicá-la como um resgate de textos perdidos com a migração da revista para novo site.


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