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Tríduo momesco

Adoro andar pelo Rio durante o carnaval, ainda mais de metrô. Num desenxabido vagão podem ser encontrados anjos calipígios, assanhadas coelhinhas, noivinhas libidinosas, freiras barbudas e faraós caucasianos. Foi ali que vi o velhíssimo e elegante componente da velha guarda de uma tradicional escola de samba olhar com um misto de espanto e desdém para o grupo de soldadinhos de chumbo que cantava, desencontrado, o refrão do Explode coração, dezenas de vezes, como num mantra, num loop insuportável para os demais viajantes.

Nessa cápsula do tempo, convivem em harmonia os que voltam vespertinos dos blocos e os que vão noturnos para a avenida ver os desfiles e/ou participar deles. Os que ainda vestem suas fantasias e os que já se desfizeram de parte delas. Os que estão acesos para a folia e os que estão prestes a apagar.

Há uns anos, madrugada alta, vagão quase vazio, ia eu para casa, sonolento, após uma noite no Sambódromo, esparramado num banco lateral, quando, numa estação, vejo colocar metade do corpanzil azul pra dentro um Homem-Aranha. O super-herói carnavalesco escaneou rapidamente o local, me encarou fixamente e perguntou, na lata, com a pressa dos que têm de salvar o mundo:

– Esse vai pra Central?

Respondi-lhe que não, temendo que isso pudesse custar muitas vidas inocentes. O mascarado, lépido como entrara, puxou-se para fora do carro, como se tivesse sido sugado, um segundo antes de as portas se fecharem. Tive a nítida sensação de ter vivido naquela noite uma experiência extrassensorial.

Digo pra você: eu acho que o carnaval é um portal que se abre uma vez por ano, por onde descem à terra, especificamente no Rio, monarcas egípcios, deuses africanos e guerreiros indígenas da era pré-colombiana, junto com piratas, papas, príncipes, havaianos, cowboys, rainhas e os mais variados personagens da cultura pop e do noticiário. Os invasores apoderam-se, sem pedir licença, dos corpos de milhares de pacatos cidadãos que, possuídos, tomam as ruas, vestindo as roupas de seus invasores, sem o menor constrangimento.

Só isso explica o que se passa, nesses quatro dias com gente como o Ribeiro da Contabilidade, a Neusa do RH, a Gislaine, da portaria, o Paulão do Almoxarifado, a Doutora Vera, a Selminha manicure e o Professor Liminha, entregues sem limites ao domínio de Momo até a madrugada da Terça-feira Gorda quando, despertados do transe, retomarão suas rotinas insossas como se nada tivesse acontecido.

Interessante é que o estado de possessão não acomete todo o mundo. Tem gente de corpo fechado que passa incólume por esse ataque de colombinas, pierrôs, palhaços e arlequins. Há os que, para não correrem perigo de serem acometidos pelo delírio momesco, fogem para as montanhas e para o interior, refugiando-se em fazendas, chácaras e sítios bem distantes, de preferência sem tv e sem acesso à internet; e os que ficam aqui mesmo ,na cidade, mas se enclausuram em casa, em prisão domiciliar, janelas fechadas, num retiro guiado pela Netflix. E que só têm contato com o mundo exterior, durante quatro dias, na hora de pegar a pizza pedida no I food. Eu não sou mais do grupo dos que brincam, nem nunca fui dos retirantes espirituais. Hoje, sou um mero observador do carnaval: passo na Presidente Vargas, para ver, de longe, os carros alegóricos das escolas de samba, assisto a alguns desfiles na TV, dou uma volta por aí para ver a festa e, claro, de vez em quando, pego o metrô, à espera de flagrar um ser de outro planeta, ou de outro plano, vagando aqui na Terra, entre nós, disfarçado de inocente folião. Assim me distraio, disso me alimento, e a crônica nesse período de festa sai brincando


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2 respostas para “Tríduo momesco”.

  1. Avatar de Jorge
    Jorge

    Hoje você é um mero observador do carnaval, compositor e folião do Bloco Foliões da Verdum, atleta olímpico de pagode de mesa e mentiroso. Pra cima de mim, não violão!

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    1. Avatar de zearnaldoguima
      zearnaldoguima

      Tô mais pra levantador de copo, o halterocopismo. rsrsrsrsr

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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

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