Você já deve ter percebido que somos vigiados, monitorados, seguidos em todos os lugares que vamos, né? Nas festas, ou no estádio de futebol, na porta da escola dos filhos, na estação do metrô ou do trem, no ponto do ônibus ou nos mercados, somos vistos por alguém, através das câmeras espalhadas pela cidade.
Ninguém escapa, e não há um motivo aparente. Quem ou o quê nos observa, apenas olha, assim como nós fazemos, quando viajamos na janela do ônibus e, na falta de algo melhor pra fazer, jogamos o olhar lá fora, distraidamente. É esse olhar vago e descompromissado que flagra uma pessoa que tropeça na calçada e cai, uma moça bonita que tem o vestido surpreendido pelo vento e se desnuda, por míseros segundos, da cintura pra baixo, um furto, uma discussão, um beijo…
Reflito sobre isso, e o algoritmo, atento ao que penso, falo ou sinto, me envia a informação: há milhares de câmeras espalhadas pela cidade, acopladas em órgãos públicos, em postes e semáforos, prédios residenciais ou comerciais, casas… Além, é claro, dos indefectíveis smartphones, que estão diuturnamente apontando suas lentes para algum canto do Rio de Janeiro.
Dia desses, caminhava pelo calçadão, quando me dei conta de que passara atrás de um casal hétero, enquanto a mulher fazia uma chamada de vídeo, tendo ao fundo o mar de Copacabana. Fiquei pensando: de quantas fotos e filmes dos outros já terei participado involuntariamente como figurante indesejado? É claro que eu devo estar em algumas imagens de torcedores do Botafogo, no Estádio Nílton Santos. Nas tantas vezes em que lá estive, constantemente percebo alguém fazendo selfies e filmagens, tentando captar a emoção no exato instante de um gol, e eu estou no foco, atrás, na frente, do lado, de perfil, de costas… Na praia, claro, também devo estar em dezenas de fotos alheias, lendo o jornal, fazendo figuração involuntária nos registros de pessoas estranhas, que só vão notar a minha presença no cenário depois de postarem a imagem em suas redes sociais.
Nesta parte da civilização a que chegamos a muito custo, há sempre alguém ou algo à espreita, para flagrar crimes, acidentes automobilísticos, milagres, brigas, fenômenos naturais, naufrágios, incêndios, exageros policiais, traições e o sexo de amantes indiscretos, exibidos ou descuidados. Estamos sob a mira das câmeras cada vez mais potentes nos lugares mais recônditos e inusitados. Sinto-me acuado, tenso, em cena o tempo todo.
Quando eu era católico, tinha essa sensação em relação a Deus. Nem no banheiro me permitia pecar, porque, afinal, o Cara vê tudo, ouve tudo, sabe tudo. O que o onipresente e onipotente vai pensar de mim, um garoto obediente e temente a Ele? Depois, quando me aproximei de uma religião de matriz africana, fui informado de que os espíritos estão o dia todo conosco, protegendo ou perturbando, e isso me travou também. Eu ia à festa, paquerava uma garota (era assim que se falava na época), e logo os pensamentos pecaminosos plantados pelo maligno entravam num embate com as boas intenções, obviamente sugeridas pelo espírito de luz. Às vezes, eu esperava demais o debate dos obsessores terminar pra tomar uma decisão, e a garota ia embora.
Hoje, nem Deus nem espíritos me observam. São câmeras diversas, fixas ou móveis, que têm por trás algo ou alguém com intenções difusas a meu respeito. Sou suspeito até prova em contrário. Certamente, para elas, em algum momento, entrarei numa contramão ou avançarei o sinal vermelho; surrupiarei um produto às escondidas, da prateleira, pularei a roleta do metrô para não pagar a passagem, sairei do caminho reto. Sinto-me como se estivesse sendo vigiado porque, para alguém que não conheço, estou prestes a cometer um crime, e isso me lembra o olhar divino.
Essa sensação de ter alguém me monitorando à distância, com as piores intenções ou sem intenção alguma, apenas porque entrei no raio de alcance de sua lente invasiva, muitas vezes me assoma e me desconcerta. Aprumo a coluna, ajeito as calças, passo a mão nos cabelos, evito enfiar o dedo no nariz ou coçar o saco. Sigo reto, como se fosse um figurante fingindo naturalidade no cenário de um filme. Isso torna a vida cansativa e tensa, porque não há coxias nem intervalos nessa filmagem ad aeternum: fomos condenados a ficar estamos eternamente on!
Agora mesmo, enquanto penso e escrevo essas coisas, alguém da janela em frente pode estar de olho em mim, curioso para saber o que faço há tanto tempo diante do computador velhíssimo à minha frente. Ajeito-me na cadeira, arrumo a blusa, olho de soslaio pela janela e cumprimento, discretamente, com um levíssimo meneio de cabeça meu observador. Quem sabe ele me livra de uma pena pesada, no além.

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