Renato Amaral

Crônica Intruso no Mundo

Imagem: Pixabay by qimono

 

Há dias, um pensamento não me sai da cabeça, o de ser um intruso no mundo. Era assim que minha avó se sentia antes de falecer aos 96 anos. Vou tentar explicar mais ou menos esse sentimento que a acompanhou no fim da vida.

No começo o que a afligia eram as lembranças sobre as agruras da sua sofrida infância e dos percalços por ter que trabalhar como empregada doméstica em casa de família com doze ou treze anos. Ela nos contava que sua vida só melhorou quando foi trabalhar como enfermeira na equipe de um médico (hoje ele dá nome a um hospital) que na época era referência em tratamento oncológico no Rio de Janeiro. Toda volta ao passado era permeada de muita nostalgia.

Depois começaram a vir às lembranças mais doloridas para ela, como a morte de parentes e amigos. Havia perdido toda referência familiar, pois ela era a própria referência! Toda lembrança era inevitável o pranto, pois recordava momentos com a mãe, irmãos, sobrinhos e tantos amigos que já haviam partido desse mundo há décadas. Tirando a filha e os três netos (incluindo eu), só lhe restava uma sobrinha viva, já idosa, de uma dezena de irmãos, cunhadas, tios e primos. O mundo como ela o conhecera já não existia mais. Campos de futebol e praças deram lugar a avenidas, praias haviam sido aterradas e rios se tornaram imensos esgotos poluídos. A velocidade do mundo era outra.  Quem olhasse seus olhos poderia ver o tamanho da dor e sofrimento que essas rememorações traziam.

Por último e pior para nós que a acompanhávamos era a vontade de não estar mais nesse mundo. Notem que não era vontade de morrer, e sim uma incompatibilidade de existir. Ela já não se sentia inserida aqui. As lembranças da vida já não mais a atormentavam, a idade avançada foi aos poucos fazendo ela se esquecer do pretérito. O brilho nos olhos perante as novidades já não existia, talvez porque já tivesse visto uma vastidão de coisas novas em sua existência. E é aí que eu quero chegar. Em minha total falta de empatia, noção, experiência ou algum adjetivo que melhor se encaixe nessa sentença, não pude alcançar com exatidão o que era aquela “sensação” que minha querida avó sentia. A de se sentir intrusa no mundo! Entretanto, hoje, palidamente passo a ter compreensão dessa “sensação” de não pertencimento que vem paulatinamente tomando conta de algumas ações em mim. Muitas coisas que eram imprescindíveis em minha vida, já não me fazem falta. Televisão, noticiário, aglomerações, festas, convenções sociais e coisas materiais são alguns casos que além de não me fazer falta, dependendo ainda me causa ojeriza.

O prosaico tem me sido mais caro ultimamente e cada vez que me distancio de algumas coisas e situações, me aproximo mais dos sentimentos de minha avó. Percebo que o “sintoma” da minha avó não era algo anormal e sim um descontentamento colateral que a direcionava para uma plenitude pessoal. E comungar dessa plenitude pessoal com minha querida avó me traz um alívio por saber que seu olhar só havia mudado a primazia.

 

Por Renatto D’Euthymio

Instagram: @renattodeuthymio

 

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Renatto D'Euthymio

Renatto D'Euthymio, carioca de Santa Tereza, dividindo residência entre São Gonçalo - RJ e a pacata e inspiradora, São José do Calçado no Estado do Espírito Santo. Estudante Rosacruz, técnico em Radiologia, flamenguista fanático e apaixonado pelas filhas Rannya e Rayanne. Cultiva desde criança uma paixão pelos livros e seus gênios. Autor do livro de poemas Solilóquio Antes e Depois da Forca (2020) e do livro de humor O Tabloide Jocoso (2021). Premiado em dezenas de concursos literários (Poesia, Crônica, Conto e Microconto), e publicado em Antologias e Coletâneas. É tão ligado à Literatura que de vez em quando não se contém e atreve-se a rabiscar algumas linhas.

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