Carina Lessa

Graciliano Ramos, o antiespetáculo e a (in)diferença modernista

 

 

                Excelentíssimos senhores, gostaria de trazer um resumo dos últimos anos da história de modo que, se não o posso por falta de recursos humanos, deixo, aos leitores sensíveis, a condição de observadores afastados da difícil tarefa que nos custa estabelecer alguma ordem nos quarteirões do universo literário. Peguemos de relance um fato: há os que fazem política, os que fazem coisa nenhuma, os que se metem em cumprir obrigações, os atuais que não são necessários, o relatório seria vasto e verdadeiro. Endossemos que os reparos são quase sempre sem importância, o caminho pode ser curto, pode ser longo, pode abrir curvas ou retas quase impossíveis. O (des)contentamento será sempre o mesmo.

Comecemos pela criação Dr. Anti, peça inaugural em fins de 2022. Ela nos apresenta em jantar uma ciência nova, inventada pelo personagem do título. O rigor científico aparente do seu discurso administra os espectadores tão fortemente que ganha status de realidade material. O jantar vai ao sabor de uma salada que estaria envenenada. O acerto de João Mostazo, com os seis personagens da peça, não redime ninguém, realiza saborosamente o confronto da alta sociedade afeiçoada às conversas extremistas contemporâneas.

João Mostazo e Ines Bushatsky, os diretores, entregaram em bandeja alguns recursos interessantes para a mistura de gêneros a que se propõem: a comédia e o terror. O pacto, diante das desconfianças que circulam na mesa de jantar, cede, ao final, à estética do drink e dos rostos manchados de sangue. A julgar pela análise recente da história do Brasil, metonímia universal de muitos tempos, é possível ver no Dr. Anti uma assimilação do Dr. Bacamarte em O alienista. Juntamente, os seis personagens desconfiados, que compõem o cenário, transportam, com vivacidade e liberdade, os vestígios de Pirandello em Seis personagens à procura de um autor.

O leitor e estudioso do teatro de Pirandello sabe que não há vontade de corporificação de quaisquer nomes em processo de formação da imagem, do momento em que o teatrólogo desdiz até mesmo a fantasia. Quando saem carnosos no/do papel, simbolizados por nomes próprios, acabam nas malhas da cópia barata, por isso os personagens revoltam-se contra os atores e contra o diretor. A figura autoral multiplica-se (i)nominavel(mente), não havia de ser de outro jeito, precisava corresponder aos personagens, cada um motivado pelo próprio drama, pelas próprias possibilidades de ser, pelos enganos interpretativos. O próprio diretor de Dr. Anti, João Mostazo, em entrevista cedida ao canal “BBC International Television”, declara, ao ser questionado sobre a possibilidade de ser ator: “Deus me livre! Não sou não. Meu negócio é coxia, bastidores. Eu não tenho nem… eu brinco: se deixarem eu entrar em cena eles cancelam a temporada no dia seguinte, não posso.”

A quem caberia determinar a ênfase da encenação, das alternâncias, e do sentido que se quer sempre representado? O diretor que não atua nos propõe mesmo as lentes de uma câmera ou binóculo, que ampliam ou generalizam as cenas, os elementos valorados e pesquisados, de modo que possamos (des)cobrir o que nos foi imposto. Desta feita que Graciliano Ramos revela a memória binocular nos romances. A expressão parte da leitura de um fragmento logo no início de Memórias do cárcere: “omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente”. Reconstrói a fala do narrador Paulo Honório: “talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes”. Não esqueçamos que o recurso à repetição assume também as fissuras na lembrança obsessiva de Luís da Silva, em Angústia.

Luís não hesita em esfacelar a mulher amada mesmo em linguagem, Marina é retalhada em anagrama e pelo campo de observação dos olhos, câmera inquiridora de si mesmo:

“Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo.

Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exatamente. Fujo dos negociantes que soltam gargalhadas enormes, disputem política e putaria.

Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveia aperta-me com bilhetes de cobrança. Bilhetes inúteis, mas dr. Gouveia não compreende isto. Há também o homem da luz, o Moisés das prestações, uma promissória de quinhentos mil-réis, já reformada. E coisas piores, muito piores.

O artigo que me pediram afasta-se do papel. é verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebe demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido”.

Encolher-se como rato parece-nos a dor de sempre dos pequenos viventes, sejam eles das Alagoas ou não. O narrador de Infância declara em “Cinturão” que batiam porque achavam que podiam bater. A indiferença social é perene, talvez por isso seja tão forte a modernidade de sua obra que se reafirma pela (in)diferença modernista. Fabiano, em Vidas Secas, logo no início, em processo de mudança, se autocondena de forma muito sutil. O filho quase desmaia de fome e sede, ele o repreende falando: “Anda, condenado do Diabo”. A cena pode ser vista pela câmera cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos (1964). Na sequência, pega o corpo do filho desprotegido e o carregar nas costas.

 

(Cena do Filme Vidas Secas – 1964)

 

A visão se amplia quando Graciliano Ramos aponta o seu lugar ao ser questionado sobre a vontade de espetáculo do “movimentozinho modernista”. Mário de Andrade vestia a chita na linguagem e os ternos no corpo da elite conversadeira, Graciliano atrás do balcão vendendo o tecido nobre de sua gente para sobreviver.

Não esqueçamos que, quando da publicação de São Bernardo, a propósito da biografia político-partidária, Graciliano é profundamente criticado pela morte de Madalena. O narrador em primeira pessoa é Paulo Honório, um homem autoritário e capitalista que definha literal e metaforicamente com a fazenda na qual mora. Tudo acontece a partir do desaparecimento físico de Madalena que retorna como imagem psíquica nebulosa e obsessiva, causando um profundo sofrimento. Perguntem-se: qual seria a verdadeira concepção de vida? A professora fala, ela se revela, aponta pelos ouvidos de Paulo Honório (em contato com o pio da coruja) o retrato moral da mulher.

Neste movimento extemporâneo (nos apropriemos da Companhia), busca-se conjugar Graciliano Ramos com o centenário passageiro da Semana de 22 e com as facetas do seu desaparecimento físico há setenta anos.

 

(Texto publicado originalmente no dia 09/04/2023; Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/deserto-seca-desidratado-%c3%a1rido-279862/)

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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