Cristiano Fretta

O livro e a vida – parte 1: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”

Quando o ebook surgiu, não faltaram alarmistas que profetizaram o fim do livro impresso. Sempre fui desconfiado de discursos catastróficos, ainda mais quando eles vêm embebidos na fé cega pela tecnologia. Com o passar dos anos, está claro que, pelo menos a curto e médio prazo, o livro impresso não irá desaparecer. Isso porque, mais do que um veículo de transmissão de conteúdos das mais diversas espécies, ele é um objetivo físico móvel, alicerçado em milênios de tradição, que pode significar um espelhamento de nossas subjetividades. Há muito de nós em cada volume que lemos.

Nessa série que começo hoje, tomei a liberdade de falar um pouco sobre os livros que mais me encantaram na minha formação de leitor profissional. Nunca consegui me desfazer deles, apesar dos anos que passaram – pois nunca conseguiria me desfazer de um pedaço de mim.

Espero que gostem!

 

Parte 1  –   “Memórias   Póstumas   de   Brás   Cubas”

O Machado de Assis do colégio: uma apostila de resumo que eu tinha que preencher no segundo ano do Ensino Médio. Colocar nomes de personagens, ações, escrever um pequeno resumo e dizer o que eu tinha achado do livro. No dia em que eu tive que apresentar minha parte sobre “Memórias Póstumas de Brás Cubas” pronta, cheguei mais cedo e copiei tudo de um colega. Linguagem chata, que não me atingia. Eu gostava de ligar meu computador e ficar horas no Flight Simulator. Depois, tocar teclado. Estudar um pouco no final do dia.

Dois anos depois, quando eu fazia cursinho pré-vestibular, redescobri o Machado na mesma velha edição da Ática. Um pessimismo latente, que me atravessava com facilidade. Crise financeira em casa. Além disso, a idade adulta tinha me mostrado inúmeras hipocrisias da vida. Aqueles capítulos curtos, eu estava entendendo boa parte das ironias. Gostoso demais me deitar na cama e ler alguns capítulos. Não, não havia esperança para a humanidade. O ser humano era naturalmente hipócrita, mesquinho e egoísta. A passagem do tempo era implacável com todos. Fiquei muito tocado pela cena em que Brás Cubas reencontra Marcela, envelhecida e desiludida. Não havia nela mais nada da beleza da juventude.

E eu no cursinho, estudando todos os dias para fazer Letras. O caminho seria aquele mesmo? Eu conseguiria a aprovação? Para mim era tudo ou nada: ou eu passava na UFRGS ou não teria curso superior. A doença do meu pai e a crise financeira em casa impediam que eu tivesse qualquer tipo de esperança em estudar em uma universidade privada. Mas eu sabia que o Machado me compreendia. E “Memórias Póstumas…” me ajudava demais: meu pessimismo encontrava eco no livro. Eu não estava só. O legado de nossa miséria: eu certamente continuaria disseminando-o pelos anos à frente que eu tinha, independentemente do que o futuro me reservava.

“Memórias Póstumas…” foi o primeiro clássico com que estabeleci uma relação afetiva. Guardo com carinho a surrada edição da Ática em minha biblioteca. Reli-a inúmeras vezes até hoje. E, sempre que leio a dedicatória aos vermes, é como se eu estivesse lendo sobre uma etapa muito confusa da minha vida.

Obrigado, Machado!

 

Fonte da imagem: autor.

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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