Carina Lessa

Cortinas

 

As cabeças passam apressadas. O container com os vasos de flores chegou e os homens começam a descarregá-las. O sol queimando enquanto o suor escorre em toda as direções. Vai descendo pelo rosto, caminha pelo pescoço e encontra a malha da roupa, logo umedecida. Uma menininha de uns dois anos sorri com os seus cachinhos um tanto embaralhados. As cabeças passam por diferentes direções. Uma delas resolve parar próxima ao sinal. Os carros seguem o fluxo, as buzinas estouram como sempre, ritmam o percurso. Talvez a cabeça parada esteja observando os cachinhos da menina balançarem quando sorri empolgada com o picolé que a mãe lhe oferece. Penso talvez porque vi a cabeça girando na direção dos sorrisos. Uma mistura de satisfação e dor me atrai à cena. Não posso descrevê-la.

Olho para dentro, encontro o espelho. Ele acompanha as pupilas que dançam no pequeno enquadramento. Espero o abraço forte. Há um espaço florido, uma espécie de estrada curvilínea sem fim. No céu do espelho, um tapete escuro e pontilhado conduz a valsa dos pássaros. Batem asas com vigor na direção noroeste pressentindo a chuva, as nuvens ficaram carregadas.

Volto-me para o exterior, perdi a criança de vista. No chão é possível ver uma pequena poça rosada de picolé derretido no momento em que um cachorro passa correndo e pisa em cima. A língua de fora, imediatamente, percebe o caramelo na pata. Ele deita e lambe. O container foi esvaziado pela metade e um homem senta numa banqueta, descansa.

De volta ao interior, percebo no ar o brilho psicodélico do sol que carreguei sem qualquer consciência. Aprecio tal sensação, sempre. Você participa da claridade e, quando retorna, fica tudo escuro, num segundo, as gotículas se apresentam. Transitam de um lado a outro e tem a sensação de que se desintegrou no universo. Transporta-se para a areia da praia no fim de tarde. Fica deitado naquele instante das dezessete horas quando os banhistas retornam às casas. O silêncio da natureza vem pelo som das águas espumosas à medida em que evaporam em troca performática com a atmosfera.

O vento atravessa o corpo e já estamos nus. Uma nudez vestida do segredo entre os homens. Esforçamo-nos por dar bom dia ao novo século. As horas chegaram tão rapidamente que não foi possível escutar as novas promessas. Encontro a audição nos olhos fechados, há muita beleza por lá. Os músculos dos olhos se cansam e me vem a impressão de um leve estrabismo. As cortinas ficaram enviesadas na reabertura dos portos e os antigos navegantes descem dos barcos um tanto enjoados. Apesar da distância, sinto o cheiro azedo na boca do estômago. Os navegantes descem do convés em quantidades múltiplas, parecem perdidos, meio anuviados.

Lá fora, as ruas se esvaziaram. Cuspiram as gentes para dentro de casa, projetos solitários de vida. Um homem correndo acena, salta e toca levemente com as pontas dos dedos numa árvore frondosa da calçada.

De volta à praia, ainda deitada, olho para a direita e vejo uma formiga carregar com grande esforço uma folha bem verdinha. Não há plantações por ali. De qual distância ela provém? Fico parada e comovida. Só pode ser novidade, bons ventos, quem sabe?

Olho o espelho e descubro um pequeno milagre, desses que encobrem nosso corpo nos fazendo sentir um sopro de vida.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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