João Rodrigues

Afastemos de nós este cálice

Sempre dou uma olhada nos noticiários, via celular, antes de sair para o trabalho. Em alguns momentos prefiro o celular à TV, pois no aparelho tenho a opção de escolher o que quero ver. E foi nele, deslizando o dedo, que parei numa manchete que me chamou a atenção. Falava sobre o livro vencedor do Prêmio Jabuti 2021, “O avesso da pele”, do escritor Jeferson Tenório, censurado em algumas escolas públicas de três estados brasileiros.

Como ainda não li a obra, fiquei curioso para saber o porquê desse recolhimento. O que este livro poderia abordar de tão estranho nos dias de hoje que não pode ser lido por estudantes dessa faixa etária? Imaginei logo um caso de censura. Mas será que ainda tem censura no Brasil?

Cliquei no link e fui ler a matéria. Eu já sabia que abordava principalmente o racismo estrutural, contra o qual lutamos há séculos e que parece nunca ter fim. Por fim, a justificativa que deram para o recolhimento do livro é que usava “linguagem inadequada”. Pois é, foi essa a resposta dada. “Não podemos chamar isso de censura? E censura já não é coisa do passado e que foi enterrada com a Ditadura Militar?”, pensei.

Saí para o trabalho pensando nisso. Imaginei ser um caso isolado e que logo seria resolvido. No entanto, não foi. “Outono de carne estranha”, do paraense Airton Souza, também entrou na lista das “obras non grata”. Motivo? Ainda não se sabe ao certo. Mas o enredo aborda, além de questões sociais, o relacionamento afetivo entre dois homens no garimpo de Serra Pelada, nos anos 80, o que causou insatisfação em algumas pessoas que, provavelmente, nunca viram algo parecido neste Planeta.

A verdade é que, nos últimos anos, o Brasil vem ressuscitando velhos fantasmas que teimam em permanecer vivos nos tempos modernos, onde não deveria haver espaço para eles nem mesmo na sombra. Pelo visto, alguns estão saindo da sombra não apenas para nos assombrar, mas para colocarem em prática seus antigos e tenebrosos hábitos de um passado que jamais deveria voltar – ou, neste caso, ter voltado.

O bom é que, com essa censura, a procura pelas duas obras subiram substancialmente, dando ainda mais visibilidade aos autores e a oportunidade de a própria sociedade fazer seu julgamento. Infelizmente – como disse um amigo meu, escritor – muitos desses alunos a quem os livros foram negados não poderão lê-los e julgá-los por si mesmos, pois nem todos têm condições de comprar um exemplar. Como sempre, quem tem menos poder aquisitivo até a oportunidade de refletir sobre algo lhe é tirada.

Alguns exemplares foram silenciados, mas outros milhares falarão ao mundo.

E assim, vamos afastando de nós este cálice!

Imagem: do autor.

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João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

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