Volta e meia, em meios intelectuais, se discute sobre a escassez da prática leitora, influências nocivas do uso excessivo da internet e receio da extinção dos livros impressos pelo avanço dos digitais. As conversas se aquecem diante do crescimento da IA. São temas relevantes, contudo, acho as referências à cultura oral pouco frequentes em tais círculos. Essa leitura e os livros pertencem ao âmbito letrado, próprio de sociedades alfabetizadas. Mesmo reconhecendo nelas a existência de analfabetos, a escrita ocupa lugar de destaque e costuma ser valorizada sobre outras formas de construir, transmitir e conservar conhecimento e legados. O menosprezo às coletividades orais ágrafas é histórico e, com o passar dos séculos, sobreviveu sob a forma de preconceito.
A escrita, enquanto tecnologia, trouxe avanço para a preservação e difusão dos saberes e da literatura. Associada à imprensa (incluídos os meios virtuais de armazenamento e transmissão), o panorama ganha alcance bem maior. No entanto, esse não é o único modo de guardar fatos, memória, costumes e ensinamentos. Linhagens de transmissores orais de histórias, como os griôs e as griotes da África ou os contadores dos povos originários brasileiros, são um exemplo da potência de outra maneira de legar às novas gerações o tesouro de seus povos.
Quando penso nas sociedades ao longo do tempo, concluo que narrar é um uso da linguagem típico do ser humano. Somos todos, em certa medida, contadores e ouvintes de histórias. Talvez por isso as narrativas tenham tanta força e quem as utiliza possa chegar a possuir grande poder. Longe de ser algo inferior, de indivíduos sem instrução, há na figura de contador uma sabedoria, um papel de importância e respeito dentro de sua comunidade. Não é qualquer um a ocupar tal lugar. Imaginem alguém capaz de não deixar morrer gentes, fatos, valores, hábitos, simbologias e religião de toda uma nação. Contadores são história viva: fazem sentir, emocionam, educam, marcam os ouvintes e lhes dão senso de pertencimento.
Em novembro, o grupo de contadoras Canteiro de Palavras, em sua reunião mensal na biblioteca municipal Marques Rebelo, na Tijuca, tratou do tema África e nos presenteou com a presença de Boniface Ofogo. Esse griô de Camarões nos contou uma história tradicional de sua terra, apropriada aos nossos tempos acelerados e ansiosos.
“Um elefante, quando entediado, jogava pingue-pongue com seu olho. Um dia, ao lançá-lo muito alto, o perdeu. Desesperado, procurou em todos os cantos, perguntou a todos os animais. Quanto mais demorava, mais nervoso ficava, não conseguindo raciocinar. Então, uma menina que costumava se esconder para vê-lo brincar, saiu detrás de um baobá, encarou-o e lhe pediu calma. Ao ver a firmeza da garota, o elefante parou, se tranquilizou, deixou de agitar o rio onde caíra o olho, e, sob as águas transparentes pôde, por fim, encontrá-lo. Concluiu o griô: todos temos dificuldades. Mas, quando estivermos em apuros, devemos lembrar do elefante, ficarmos calmos e deixarmos nossa mente transparente como o rio. Aí, acharemos a solução.”
Na atualidade, seguindo uma tradição de eras e continentes, temos o prazer de ouvir e ver eventos de contação que combinam técnicas ancestrais com inovações. São atividades lúdicas e terapêuticas, resgatando um tipo especial de interação humana, em torno das narrativas tradicionais e da literatura. Ao seu lado, porém, sobrevive, porque defendida por comunidades, estudiosos e entidades, outra vertente dessa prática: a que ensina, transmite, conserva saberes e marca identidades. Uma forma de divulgar conhecimento que não ignora a cultura escrita, embora deixe marcado o lugar da tradição oral.
Nota da autora: Esta crônica, aqui atualizada, foi publicada originalmente em 20/11/2024 na Entre Poetas & Poesias, mas se perdeu com a migração da Revista.


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