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Thor: um raio que passou

Quando abri o portão, dei de cara com ele. Estava cabisbaixo, meio recolhido, como se tivesse tido uma grande decepção. Tentei olhá-lo nos olhos, ler seu semblante, compreendê-lo, mas desviou a vista, constrangido; senti que não queria partilhar sua dor. Respeitei-o. Passei ao lado e entrei.

            Minha esposa tinha ido buscá-lo no posto de gasolina, onde um motorista de caminhão o tinha deixado.

            – Está quieto desde que chegou. Ofereci comida e bebida, mas recusou. É uma tristeza só – explicou minha esposa assim que entrei.

            – Não lhe estranhou? – perguntei.

            – Não. Acho que ainda se lembra de mim.

            Havia mais ou menos um ano, tínhamos nos conhecido no Rio de Janeiro, ainda pequeno. Porte elegante, olhar firme, alegre… parecia as ondas do mar em dias de maré alta. Ninguém que o conhecesse diria que era ele.

            – É o cansaço – disse minha esposa. – O motorista falou que ele não comeu nem bebeu direito desde que saiu. Coitado! Deve estar estressado.

            Guardei minhas coisas – eu tinha acabado de chegar do trabalho –, dei mais um tempinho e fui vê-lo como estava. Na mesma. Não reconhecia o lugar. Era outro habitat. Nesses casos, é comum que fiquemos perdidos, tentando nos encontrar. Nenhuma voz conhecida, nenhum cheiro habitual, nenhum brinquedo dos seus. Nada. Me coloquei no lugar dele. Sei o que é estar em terras alheias. Os sons, as vozes, os cheiros, as cores, tudo é estranho!

            Me aproximei um pouco, chamei-o pelo nome. “Thor”. Ele me olhou franzindo a sobrancelha, talvez tentando reconhecer a voz. Falei de novo. Não ligou muito. Deixei-o em paz. No dia seguinte, quem sabe, estaria mais tranquilo e talvez me desse um pouco de atenção. Dormiu ali mesmo.

            No dia seguinte, novas tentativas, retribuídas com um olhar mais amistoso. Chamei-o para dar uma voltinha na rua. Levantou-se, já alegre. Aos poucos, fomos ficando mais próximos. Logo se acostumou comigo. E todo dia pela manhã ou à noite dávamos uma voltinha no quarteirão, que, à medida que se acostumava com o ambiente e comigo, fui esticando. Não demorou e fomos passear pela rua, um pouco mais longe de casa.

            Já me esperava chegar do trabalho. Quando eu abria o portão, lá estava ele, aos pulos, com um brinquedo na boca, me convidando para brincar. Nos divertíamos um pouco e eu entrava. À noite, ficava na porta, em posição de esfinge, me olhando, esperando para o passeio na rua. Quando eu pegava a chave, ficava aos pulos, parecendo uma criança à espera de um bombom de chocolate. Durante as minhas refeições, eu sempre separava um pedaço do que estive comendo para dar a ele, que ficava ali, esperando.

            Na pandemia, tarde da noite, quando a polícia também se recolhia e nem um ser vivo dava o ar da graça, saímos para fazer uma caminhada, ou até mesmo uma corrida. Ao dia, brincávamos na varanda, já que não estávamos trabalhando. Tornamo-nos grandes amigos. Cuidávamos dele, e ele de nós. Ninguém se aproximava de mim com ele por perto. Seu latido era de assombrar, fazia jus a seu nome: Thor, o deus do trovão. Todos da rua tinham medo daquele pitbull – inclusive os outros cães –, que, apesar de misturado, tinha o aspecto assustador da raça. Só nós de casa sabíamos o quanto era doce e inteligente. Bravo, é claro, mas não com a gente. Tinha pai pitbull e mãe border collie. Suas cores vinho e branco vibrantes não passavam despercebidas. Todos o olhavam. As crianças o admiravam, mexiam com ele, tentando chamar sua atenção. E ele passava, garboso, como se fosse consciente de sua força e beleza. Fazia jus ao nome. Rugia igual ao trovão; brilhava como um raio; agitado feito a tempestade.

Ficou conosco uns cinco anos, mais ou menos, até que, infelizmente, deu seu último suspiro. Agora, por onde passo, percebo o vazio que deixou. Nossa casa está imensa e silenciosa, assim como a saudade.

Que seu Valhala lhe receba com festa, porque, por aqui, a vida dele foi uma.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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