A procura do que não se pode reter
Uma vez, quando criança, fiz um pedido estranho a Deus: não quero nunca sair da escola. Ele atendeu. Virei professor.
Se a memória não estiver me traindo (ela sempre faz isso, mas eu não vivo sem ela), era aula da finada Professora Sônia Muniz da Silva, da antiga terceira série do Ensino Fundamental. Eu ainda acreditava em mitologia grega e outras tantas aprendidas nos desenhos animados e nos episódios do Sítio do Picapau Amarelo na TV Educativa. Então, vou escrever fingindo ser aquele garoto que comia amoras colidas do seu quintal tão mágico; território imenso cheio de passarinhos e gaviões, cobras e lagartos, selva e pântano no alto da montanha e ruínas de civilizações antigas descobertas nas minhas escavações em busca de tesouros. Nessa terra mágica de 360 m², viviam três crianças que estão desaparecidas há cerca de quatro décadas. Procuro por elas sempre. Às vezes, conseguem falar comigo de longe, mas logo se vão no meio da névoa ou da tempestade. Nenhum desses reencontros se deu no deserto. A areia escorra muito rápido na ampulheta.
Era recreio. Minha sala de aula tinha portas e janelas para uma varanda de ladrilhos vermelhos encerados. Mais à frente, a quadra de esportes. A parede oposta dava para uma calçada externa a margear um grande pátio onde havia uma tamarindeira. Hoje, temos uma quadra de areia. Conseguíamos espiar pelos cobogós dessa parede quase cega o movimento do outro lado. Para tanto, precisávamos subir nas mesas muito rápidos para não sermos flagrados pela inspetora, a finada Dona Maria, uma senhora baixota, de cabelos curtos encaracolados e óculos de aros grossos iguais aos meus de hoje. Era um terror, mas eu gostava dela. Inclusive já me salvou quando iriam me homenagear com uma chuva de ovos podres. Fugi pelos fundos do colégio e voltei para casa por outro caminho. Lembrem-me de contar isso a vocês algum dia. Enfim… Estou perdido! Não cai no brejo atrás do colégio e nem me afoguei no riacho, verdadeiro fosso fronteiriço ao castelo onde estudava. Estou perdido na narrativa, atrasado. Prolixo, para ser mais sincero. Mnemósine está zangada comigo porque insinuei não acreditar mais nela. É que nossa conexão está ficando mais fraca ao longo do tempo. Cronos não gosta de nós. E, no seu reinado cruel, a memória padece. As emoções vêm nos salvar. Do jeito delas, puxam histórias do abismo e as jogam para cima. Não somos mais tão rápidos para resgatá-las e elas voltam para as profundezas. Estou tentando segurar uma delas da beira do penhasco. Não tenho forças suficientes.
Puxei. Ela se agarrou em mim toda destroçada. A coitada vai se mostrar agora para vocês.
Estava sentado na terceira carteira da terceira fileira e olhando para a porta enquanto comia pão doce cheio, amoras lá de casa e amendoim confeitado comprado pelo meu pai nas ruas do Centro do Rio de Janeiro. A gula estava sempre junto a mim. Era um verdadeiro Pantagruel magrelo e sem forças, fraco por doces e pasteis de queijo. Essa mistura abateu o guloso a ponto de fazê-lo descomer tudo. Fui para casa mal. Tomei chás insuportáveis e fiz dieta: batata inglesa cozida na água e sal somente. Minha mãe disse:
– Amanhã, você estará bom, meu filho…
Vovó Laura tinha que comentar:
– O fígado dele está congestionado. Foi a mistura que ele fez do amendoim com o pão doce cheio dessa tinta amarela e as amoras quentes que ele deve ter comido sem lavar.
Não sei como minha vó sabia do meu lanche. Ela nunca preparou minha lancheira. Nesse dia, minha mãe nos deu os pães e fomos para a escola. Só que a matriarca da família era esperta. Tinha me visto levando os amendoins e as amoras escondidos e ficou quieta. Parecia ter o prazer de nos desmascarar ou dizer o óbvio depois de algo ter acontecido. No dia seguinte, continuei a dieta e fui ao colégio. Meu lanche eram biscoitos de água e sal e chá preto sem açúcar. A professora perguntou se eu estava melhor e lecionou como se nada houvesse acontecido. A aula foi interessante e meus colegas falaram coisas muito engraçadas. Estava aliviado do mal-estar. Em um surto de gratidão e euforia, pedi a Deus que nunca mais me tirasse da escola. Ele, em sua misericórdia e lógica repleta de amor, colocou professores e colegas incríveis no meu caminho. Fiquei viciado em assistir aulas e em interagir com os outros estudantes. O tempo passou e eu tinha que procurar uma profissão. Inscrevi-me para a escola técnica. Fui aprovado para a turma de eletrônica. Chegando à nova escola, mudei meu curso para edificações. Queria ser um aprendiz de arquiteto. Na minha cabeça, estava a restauração do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, a Capela Sistina, cidades funcionais e totalmente integradas à natureza. Enfim… Fiquei perdido de novo. Pensei ter me encontrado num escritório de engenharia. Experimentei uma via crucis. Ressurgi nas Letras e desbravei o mundo da sala de aula. Não sei até quando o Pai Eterno vai me manter na escola. Procuro refazer meus votos com o Divino Mestre e pedir permissão para sair. A aposentadoria está se aproximando, mas ainda há muitos diários a serem preenchidos.
Por falar em diários, a minha coordenadora com o mesmo nome da filha mais velha do Poetinha deverá ficar no meu pé até minhas anotações ficarem em dia. Amanhã, aplicarei prova. Barroco, Arcadismo, radicais gregos e latinos. Conflito de ideias e de sensações. Procuro o equilíbrio e não o encontro. Tento cortar o supérfluo, o texto, porém, segue cheio de avanços e recuos. Aproveito a noite para escrever esse texto. Vou à igreja e depois continuarei a escrever. O sagrado e o secular em uma só pessoa. Nada mais brasileiro!
Saí de casa numa moto de aplicativo. Gostaria tanto de ter escrito que tomei um tílburi ou um bonde, mas não vivo no final do século XIX e nem no começo do XX. Agora, temos os aplicativos. Não sei o que mais inventarão. Cheguei à igreja a tempo, mas gostaria de que os transportes fossem ainda mais eficientes. Quem sabe voadores como a minha imaginação e tão rápidos quanto.
Noutro dia, estava indo para o trabalho num bairro muito distante do meu. Trata-se duma escola muito bonita num lugar bucólico da cidade, mas muito afastado do Centro. Os ônibus para lá saem em poucos horários. Se eu perder um carro, só conseguirei tomar outro cerca de 40 minutos depois, o que significa atraso equivalente a um tempo de aula. Nesse dia, cheguei cedo ao ponto, mas ouve um problema com os veículos. Salvo engano, um acidente no meio do caminho. Avisei à coordenadora do ocorrido. Ela já havia sabido disso através do mesmo grupo naquele aplicativo famoso onde trocam-se mensagens. Ela pediu que me avisasse quando o ônibus saísse do Centro da cidade a fim de embarcar no meio do caminho.
Tentei tomar uma lotada, chamada aqui em Itaboraí de carrinho (transporte alternativo particular em automóvel). Não havia nenhum no ponto. Minha colega me ofereceu carona. Avisei à coordenadora sobre a minha carona. Quando passávamos em frente à casa da nossa chefe, um ônibus de outra linha estava à nossa frente. Deduzimos que a coordenadora estava nesse veículo. Tive a brilhante ideia de entrar em contato com uma aluna que costuma tomar essa linha rumo ao colégio. Gostaríamos de que a coordenadora viajasse conosco até a escola. A aluna não atendeu. Ultrapassamos o ônibus e tivemos a brilhante ideia de acenarmos para a chefe descer do ônibus e entrar no carro. A dita aluna estava na janela. Minha colega imaginou ser a coordenadora e acenou para a garota. A aluna retribuiu. O ônibus dessa linha possui um itinerário diferente. Ele vai até um determinado bairro e retorna para o mesmo trajeto do ônibus que eu perdi. Nesse retorno, imaginávamos que a coordenadora iria descer do veículo e entrar no automóvel. Minha colega conseguiu falar com ela. Nossa chefe já estava no colégio. Havia tomado um carrinho antes mesmo desse ônibus. Chegamos à escola e contamos do ocorrido. A aluna viu o registro da minha ligação e perguntou ou que desejava. Expliquei e ela comentou que a professora acenou para ela e ela retribuiu o aceno. Enfim, uma confusão só.
A vida é feita de perdas. Não conseguimos aprisionar o instante nem mesmo através da fotografia. A vida é fugaz. Em tempos de inteligência artificial, temos a doce ilusão de criarmos e recriarmos cenas ao bel prazer. Ledo engano. A fugacidade do tempo e da memória é como o pó soprado pelo vento por todos os lados num ciclo interminável. Parece que acabei o texto, mas não sei bem ao certo como classificá-lo. Faça isso por mim. Agora preciso descansar logo após a publicação deste. Faltam apenas dois minutos e ainda não encontrei um meio de concatenar as ideias. Noutro dia nos falamos. Afinal de contas, amanhã preciso me apresentar à coordenação.

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