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Pés descalços

Apertado no metrô, olho pra baixo, agarrado à bolsa em que está a minha vida. Sem ter nem como mexer a cabeça, observo os pés que rodeiam o meu, lá embaixo, disputando espaço com meus fiéis mocassins marrons.

O pé direito de um sapato feminino de salto enfia seu bico na lateral do meu pé esquerdo, que resiste bravamente à importunação. Entre os pés mal cobertos por um par de tênis rasgados, a um centímetro dos meus pés, percebo uma bolsa igualmente amarfanhada pelo tempo de uso, de onde quase saem ferramentas mal-encaradas.

Aqui, encostado ao meu pé direito, um par de tênis jovial sustenta o peso de um rapaz mais alto que eu, em cujo ombro encosto a orelha direita. Ali atrás, vislumbro uma bota, só o pé esquerdo, outro tênis, só o direito, este mais novinho, um par de sandálias embaixo de dois pés magros, cujos dedos escapam pela finíssima tira que deveria contê-los. Vejo ainda pedaços de sapatos sociais, chinelos, outros calçados femininos e um pé descalço.

O pé descalço rouba a minha atenção. Quem está no metrô sem sapatos? Que pessoa viaja nessas condições? Intrigado com o pé descalço naquele mar de sapatos variados, nem percebo a chegada à estação. Há uma troca violenta e descoordenada de pessoas à minha volta.

Sustento-me a muito custo na minha cidadela e consigo, enfim, não sem luta, agarrar-me ao balaústre. O trem está um pouco menos cheio. Agora, é possível fazer uma varredura quase completa dos calçados que esmagam o assoalho do vagão. Rapidamente percebo uma distribuição uniforme entre sapatos femininos e masculinos. Os juvenis são poucos. Não há crianças na composição, pelo menos não vi calçados que lhes servissem.

Lembro-me do pé descalço e passo a buscá-lo avidamente. Confesso uma certa inquietação na busca. Vasculho acintosamente cada metro quadrado do metrô, a procurar aquele desvalido pé sem sapato. Terá saltado na estação que ficara pra trás? A imagem do pé feminino, com as unhas gastas, algumas ainda com restos da tinta que lhes cobriam o esmalte natural está na minha cabeça como uma mancha.

Consigo virar um pouco o pescoço, sem incomodar os vizinhos de metro quadrado. Preciso completar a perseguição, vasculhando a única parte do trem em que ainda não tinha procurado. Como uma sonda, meu olho percorre os mínimos espaços entre os pés que disputam espaço no chão do veículo, mas não encontro o pé desprotegido.

Outra estação chega, e a porta atrás de mim se abre, despejando violentamente na estação, como num jorro, metade das pessoas que dividiam comigo o ar deste vagão. Agarro-me com força ao balaústre de metal, para não ser levado pela descarga de gente que se joga porta afora.

O apito soa e a porta se fecha. O vagão, mais vazio, tem agora menos pés para a observação, a maior parte sob pessoas sentadas. Houve uma troca de personagens, mas nada do pé desnudo. Algo lá fora, entretanto, quando o trem se põe em movimento, de repente chama a minha atenção. Enquanto me viro, sobem a escada que corre pra trás na estação, dois pés descalços. Subo o olhar rapidamente para alcançar a dona deles, mas não consigo ver muito além das panturrilhas, magras e descobertas e o pé direito sujo que vira a sola para mim ao alcançar um degrau acima, antes que a escuridão do túnel engula o trem em que estou.

Sigo a viagem e, em pouco tempo, chega a hora de desembarcar. O pé descalço continua pisando nas elucubrações que faço eletricamente sobre sua dona e os motivos que a levaram a viajar, justo no meu vagão, sem sapatos. Subo os degraus da estação, como a dona dos pés descalços fizera quatro estações antes, pensando nela e na possibilidade ínfima de um dia encontrá-la outra vez.

O que lhe diria? Por que falaria com ela? Ela me responderia? Na rua, enquanto caminho célere para o compromisso importantíssimo, o pensamento embaralha a visão e me faz errar o caminho. Levanto enfim os olhos para o mundo real e me vejo mais longe do que deveria do destino. Segui, sem saber, a mulher descalça, mesmo sem nem desconfiar para onde ela fora.

Recomponho-me, afasto da mente a visão que me alucinou no metrô e retomo a jornada até o importante compromisso que me trouxe à cidade. Chego, enfim, ao prédio em que fica o escritório. Subo o elevador de olho nos sapatos comportados que cercam os meus. No 11º andar, sigo os sapatos de saltos altos pretos da atendente até uma sala carpetada, onde sou recebido por um advogado de sapatos de couro nervosos.

Olho timidamente os meus pés cobertos pelo velho mocassim marrom e cumprimento, sem entusiasmo, os pés balançantes que me recebem soberbos, e me sinto com os pés descalços do metrô.

– Desculpe o atraso.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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