Eu tive uma namorada argentina. Nosso relacionamento foi curto, mas intenso. (Há eufemismo na escolha desse adjetivo.) Eu a conheci no momento em que ela acabara de se estabelecer no Rio, após nove vindas seguidas como turista, sempre em janeiro, sempre em Copacabana.
Às vezes discutíamos (outro eufemismo), e as nossas divididas verbais pareciam as dos jogadores dos nossos selecionados na antiga Copa Roca. Os períodos de tranquilidade eram maravilhosos, mas a paz não passava, na verdade, de cessar-fogo, que era logo desrespeitado por um de nós.
Eu, confesso, não sou dos mais afáveis, mas ela ia de zero a cem em um segundo. Explodia com facilidade. Aborrecia-se à toa, sobretudo se o assunto era o futebol – ela era Racing – e o comportamento dos brasileiros. Uma vez, seguiu um casal que tinha jogado, bem na frente dela, um papel de sorvete no chão. Cutucou a moça, que ia feliz com o picolé na boca, e enfiou-lhe na mão a embalagem suja, acompanhada dos piores desaforos no melhor portunhol. Obviamente, o homem do casal hétero dirigiu a sua indignação para mim. Deixo à sua imaginação o que sobreveio desse episódio.
Não era fácil a gringa!
Uma vez, entre muitas, ela me disse algo que me fez pensar:
– Vocês brasileiros têm que parar de ver o país de vocês como turistas. Ficam babando pelo mar e pela montanha, pelo sol, pela morena na praia de biquíni (essa era uma indireta), pela bossa-nova, pelo Tom Jobim, pelo samba, pelo carnaval e pelo futebol, que nem é mais tan bueno asi. Têm que olhar os problemas, as cosas erradas, a violência, a corrupción.
Quando nos despedimos, disse-lhe que aprendera muito com ela. Ela retrucou: – Já você foi um péssimo professor. Só me levou a lugares que qualquer guia salame levaria.
Nunca mais nos vimos ou nos falamos.
Por causa dela, às vezes me pego a ponto de esfregar na cara de um compatriota o lixo jogado displicentemente no chão. Ou de levantar da minha mesa, no restaurante, e exigir que o fumante vá fumar lá fora, do outro lado da rua. Xingo motoristas mal educados, como ela fazia, a plenos pulmões, nas raras vezes em que saíamos no meu carro, para levá-la a algum ponto turístico manjado.
Quando vejo reportagens na TV sobre as condições dos transportes públicos – condições de trens e ônibus, atrasos, fechamento de estações, interrupções de oferta de linhas – lembro do quanto ela reclamava da nossa abulia.
– La gente por acá es muy boluda!
Acho que, com ela, compreendi por que são tão mais engajados politicamente os argentinos. Convivendo, mesmo por pouco tempo, com uma representante legítima desse povo tão aguerrido, entendi o que nos faz ter implicância com os argentinos: eles são o contrário de nós.
Percebi no comportamento da argentina a mesma entrega dos times portenhos no gramado e em qualquer esporte, em que lutam até o último segundo e se entregam à partida como se fosse uma batalha de vida e morte. Porque é.
Olho ainda embevecido a praia, o mar, a montanha, continuo apreciando muito Tom Jobim e samba, mas tento remover a névoa turística do olhar de que a namorada argentina me acusava, para ver as coisas com os óculos da indignação que ela me deixou de herança. Reparo os malfeitos e dou razão a ela, tentando minimamente enxergar o que está em volta de forma crítica. Com exceção da morena de biquíni estendida na areia.


Deixe um comentário