@revistaentrepoetas / @professorrenatocardoso

,

32 cliques

Projeto 16 horas – Edição: Ago.25 – Conto – “Deadline” – Cristina Vergnano

Durante todo o dia, Laura esteve diante do computador brigando com as ideias, tentando escrever o conto cujo prazo de entrega se aproximava vertiginosamente. Seguiu os rituais, explorou várias técnicas, acionou leituras prévias, manteve a rotina de trabalho e nada. Só palavrório inútil. Por fim, encarou a tela do aparelho e falou:

— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantos dias passamos refinando criações. Me ajuda, vai?!

O computador respondeu:

— Isso não me cabe. Só registro o que você digita aqui. Por que não consulta o travesseiro?

A proposta tinha lá seu apelo. A mulher saiu do escritório sem desligar a máquina (“ela que se suspenda sozinha”). Entrou no quarto, pôs o pijama, pegou o travesseiro, se jogou na cama e murmurou:

— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantas horas passamos alimentando sonhos. O computador disse só registrar o que coloco nele. Me ajuda, vai?!

Por um tempo, ele ficou mudo. A escritora se remexia na cama, virava o travesseiro de um lado para o outro, buscando melhor posição, o amassava, socava com os nós dos dedos, afofava, voltava a amassar e a trocar de lugar. Farto de tanto mexe-mexe, ele, enfim, resmungou:

— Não me cabe sanar dificuldades. Só acomodo a sua cabeça pra você descansar e encontrar seus caminhos. Por que não consulta a caderneta de notas?

A sugestão bateu como uma ideia luminosa, até porque, estar ali se revirando na cama não deu em nada. Ela se levantou, voltou ao escritório e tomou a pequena caderneta nas mãos.

— Pô, garota, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantos momentos passamos tramando projetos. O computador me disse só registrar o que coloco nele. O travesseiro, só acomodar minha cabeça pra eu descansar. Me ajuda, vai?

A caderneta, mais sociável, logo deu uma resposta:

— Não cabe a mim resolver a questão. Só guardo palavras e imagens nas minhas páginas. Recebo, mas pouco posso dar em troca. Por que não consulta o lápis?

Sentindo as horas passarem e vendo a aproximação do término de seu prazo, Laura tremia e tinha dificuldades de respirar. Sem encontrar uma saída, estava prestes a entregar os pontos. Não custava, portanto, tentar mais uma vez. Pegou seu lápis e suplicou:

— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tanto compartilhamos anotando ideias. O computador me disse só registrar o que coloco nele. O travesseiro, só acomodar minha cabeça pra eu descansar. A caderneta apenas acolhe as palavras que anoto nas suas páginas. Me ajuda, vai?

O lápis era velho, gasto, cheio de mordidas e com tamanho reduzido. Agora, para escrever, precisava de uma ponteira extensora. Por um bom período os dois tinham sido companheiros, mas sua vida se extinguia. Um pouco cansado, falou:

— Não me cabe oferecer a saída. Só posso mesmo trazer à vida o produto de seu trabalho. Por que não consulta o espelho?

A escritora estava perdendo a força e a confiança. E se também não funcionasse dessa vez? Resignou-se, contudo, caminhou pesadamente até o banheiro, acendeu a luz e voltou a tentar, se olhando no espelho.

— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantas manhãs e noites trocamos olhares afagando nossos egos. O computador me disse só registrar o que coloco nele. O travesseiro, só acomodar minha cabeça pra eu descansar. A caderneta apenas acolhe as palavras que anoto nas suas páginas. O lápis traz à vida, unicamente, o produto de meu trabalho. Me ajuda, vai?

— Não cabe a mim outra coisa além de mostrar você a si mesma, dia após dia. Minha imagem é seu duplo, minha voz, seu eco. Sou o espelhado em mim.

Laura parou perplexa pela primeira vez desde que tinha começado a buscar auxílio. Aproximou-se do espelho. Tocou com a ponta do dedo os olhos (seus próprios olhos) refletidos ali e deu com a resposta. Virou-se para a porta, apagou a luz, foi para o escritório, despertou o computador, abriu o editor de texto e começou:

Durante todo o dia, uma escritora esteve diante do computador brigando com as ideias, tentando escrever o conto cujo prazo de entrega se aproximava vertiginosamente…”



Nota da autora: Este conto é a versão revisada do publicado em 17/07/2024, na Entre Poetas & Poesias, perdido com a migração para o novo site.


Descubra mais sobre Revista Entre Poetas & Poesias

Assine gratuitamente para receber nossos textos por e-mail.

Deixe um comentário

Sobre

Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

Com uma equipe formada por escritores de diferentes idades e áreas do conhecimento, buscamos sempre oferecer conteúdo de qualidade, promovendo o diálogo entre gerações e perspectivas diversas.

Se você deseja ter seu texto publicado, envie sua produção para:
revistaentrepoetasepoesias@gmail.com

Acesse: www.entrepoetasepoesias.com.br
Siga no Instagram: @revistaentrepoetas / @professorrenatocardoso
Canal no WhatsApp: Clique aqui para entrar

PESQUISA