Durante todo o dia, Laura esteve diante do computador brigando com as ideias, tentando escrever o conto cujo prazo de entrega se aproximava vertiginosamente. Seguiu os rituais, explorou várias técnicas, acionou leituras prévias, manteve a rotina de trabalho e nada. Só palavrório inútil. Por fim, encarou a tela do aparelho e falou:
— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantos dias passamos refinando criações. Me ajuda, vai?!
O computador respondeu:
— Isso não me cabe. Só registro o que você digita aqui. Por que não consulta o travesseiro?
A proposta tinha lá seu apelo. A mulher saiu do escritório sem desligar a máquina (“ela que se suspenda sozinha”). Entrou no quarto, pôs o pijama, pegou o travesseiro, se jogou na cama e murmurou:
— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantas horas passamos alimentando sonhos. O computador disse só registrar o que coloco nele. Me ajuda, vai?!
Por um tempo, ele ficou mudo. A escritora se remexia na cama, virava o travesseiro de um lado para o outro, buscando melhor posição, o amassava, socava com os nós dos dedos, afofava, voltava a amassar e a trocar de lugar. Farto de tanto mexe-mexe, ele, enfim, resmungou:
— Não me cabe sanar dificuldades. Só acomodo a sua cabeça pra você descansar e encontrar seus caminhos. Por que não consulta a caderneta de notas?
A sugestão bateu como uma ideia luminosa, até porque, estar ali se revirando na cama não deu em nada. Ela se levantou, voltou ao escritório e tomou a pequena caderneta nas mãos.
— Pô, garota, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantos momentos passamos tramando projetos. O computador me disse só registrar o que coloco nele. O travesseiro, só acomodar minha cabeça pra eu descansar. Me ajuda, vai?
A caderneta, mais sociável, logo deu uma resposta:
— Não cabe a mim resolver a questão. Só guardo palavras e imagens nas minhas páginas. Recebo, mas pouco posso dar em troca. Por que não consulta o lápis?
Sentindo as horas passarem e vendo a aproximação do término de seu prazo, Laura tremia e tinha dificuldades de respirar. Sem encontrar uma saída, estava prestes a entregar os pontos. Não custava, portanto, tentar mais uma vez. Pegou seu lápis e suplicou:
— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tanto compartilhamos anotando ideias. O computador me disse só registrar o que coloco nele. O travesseiro, só acomodar minha cabeça pra eu descansar. A caderneta apenas acolhe as palavras que anoto nas suas páginas. Me ajuda, vai?
O lápis era velho, gasto, cheio de mordidas e com tamanho reduzido. Agora, para escrever, precisava de uma ponteira extensora. Por um bom período os dois tinham sido companheiros, mas sua vida se extinguia. Um pouco cansado, falou:
— Não me cabe oferecer a saída. Só posso mesmo trazer à vida o produto de seu trabalho. Por que não consulta o espelho?
A escritora estava perdendo a força e a confiança. E se também não funcionasse dessa vez? Resignou-se, contudo, caminhou pesadamente até o banheiro, acendeu a luz e voltou a tentar, se olhando no espelho.
— Pô, cara, tô com a deadline deste conto mordendo meus calcanhares. Tantas manhãs e noites trocamos olhares afagando nossos egos. O computador me disse só registrar o que coloco nele. O travesseiro, só acomodar minha cabeça pra eu descansar. A caderneta apenas acolhe as palavras que anoto nas suas páginas. O lápis traz à vida, unicamente, o produto de meu trabalho. Me ajuda, vai?
— Não cabe a mim outra coisa além de mostrar você a si mesma, dia após dia. Minha imagem é seu duplo, minha voz, seu eco. Sou o espelhado em mim.
Laura parou perplexa pela primeira vez desde que tinha começado a buscar auxílio. Aproximou-se do espelho. Tocou com a ponta do dedo os olhos (seus próprios olhos) refletidos ali e deu com a resposta. Virou-se para a porta, apagou a luz, foi para o escritório, despertou o computador, abriu o editor de texto e começou:
“Durante todo o dia, uma escritora esteve diante do computador brigando com as ideias, tentando escrever o conto cujo prazo de entrega se aproximava vertiginosamente…”
Nota da autora: Este conto é a versão revisada do publicado em 17/07/2024, na Entre Poetas & Poesias, perdido com a migração para o novo site.


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