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Projeto 16 horas – Edição: Jul.25 – Crônica – “Coisa de avós” – Cristina Vergnano

Você, por acaso, já ouviu ou leu a palavra “avoengo”? Sabe o que significa? Pois, creia, ela existe. E como comemoraremos, em 26 de julho, o Dia dos Avós, vamos ao tema.

A imagem desses ancestrais costuma se relacionar a carinho, acolhimento, e, inclusive, certa permissividade benevolente. Afinal, como diz o povo, pais são para educar e avós, para estragar. Na literatura, figuras como Dona Benta, de O Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, ou vovô Joe, de A fantástica fábrica de chocolate, de Roald Dahl, reforçam o lado doce e companheiro desses familiares idosos, que acompanham, aconselham e mimam os mais jovens.

Na atualidade, contudo, fica difícil associá-los a gente de cabelos brancos, rugas no rosto e nas mãos, calma, com todo o tempo do mundo, feita para contar histórias para as crianças sentadas em seus colos, ou fazer guloseimas. Há toda uma geração de homens e mulheres, a partir dos 50 anos, produtiva, com atividades físicas e intelectuais, ainda no mercado laboral, acumulando a função de olhar os netos, enquanto seus filhos estudam e trabalham (quando não ocupam o papel de educadores principais).

Meus avós nasceram no final do século XIX, ou no início do XX. Tínhamos, assim, uma grande distância etária. Embora gostasse deles, sentia um certo afastamento respeitoso. Só muitos anos mais tarde, fui tomando consciência do quão especiais eram e de como deixaram marcas positivas na minha memória. A questão reside nos detalhes.

Pouco posso falar de meu avô materno, pois morreu quando minha mãe era pequena. O paterno, ao contrário, viveu até a minha adolescência, um imigrante italiano, chegado ao país aos três anos de idade, rude, porém, atencioso com os netos. Dele, guardo sua figura de antanho, com colete escuro, suspensórios e boina de lã na cabeça.

Quanto às minhas avós, eram bem diferentes, o que me fez recordar o livro Era uma vez duas avós, de Naumim Aizen, a nos mostrar como toda relação tem vários lados. A mãe de minha mãe, viúva aos trinta e dois anos com cinco filhos pequenos, tinha senso prático e temperamento forte. Não conversava muito conosco, era severa, religiosa e simples, mas atenta às necessidades de todos. Já a mãe de meu pai me parecia flutuar na vida, quase transparente. Falava baixo e pouco, corpo pequeno e bem magro, sempre ocupada com o fogão, a horta, ou o galinheiro. Eu tinha a impressão de que esta vivia submissa, enquanto aquela era uma verdadeira matriarca.

O tempo e a maturidade nos fazem rever conceitos, reavaliar e colocar as coisas em seus devidos (ou mais justos) lugares. Com a morte de meu avô paterno, vovó Maria mostrou, com sua delicadeza habitual, ser dona de si, possuidora de ideias e vontades, tal qual a vovó Rosa sempre o fizera. Mulheres do final dos 1800 ou princípio dos 1900, provavelmente, deixavam transparecer sua força de uma forma diversa daquela a que nos acostumamos após a revolução feminina e os movimentos libertários de meados do século XX.

Também a sensação de que tal carinho extremo de avós por seus netos é coisa da literatura ou de sentimentalismo exagerado pôde ser redimensionada na minha cabeça. Revisitando minha infância, vários atos cotidianos me falam, hoje, desse amor. Cito dois. A noite em que meus avós paternos me convidaram para sentar com eles à mesa da cozinha e tomar chá, enquanto todos já dormiam. Ou os lanches com catupiry, petisco que só comia na casa da vovó Rosa, quem, apesar das dificuldades, nunca deixava de dar um dinheirinho, tirado de sua lata de economias, como presente de aniversário.

A verdade é que o carinho não depende de grandes iniciativas ou de presentes vultosos e caros. Tampouco são necessários discursos eloquentes, a fim de garantir o relacionamento. A simplicidade fala mais alto ao coração. Pode levar tempo para nos darmos conta, mas é nos pequenos detalhes que se sente esse amor avoengo, herdado de nossos avós junto com tantos ensinamentos. Ele une gerações marcadas por significativa distância e ajuda a construir afetividades. Algo sem explicação lógica, que marca para sempre. Apenas, coisa de avós.


Nota da autora: Esta crônica é a versão revisada e reduzida da publicada em 31/07/2024 na Entre Poetas & Poesias, perdida com a migração para o novo site.


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