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O casarão

Começaram arrancando-lhe as telhas, uma por uma, sadicamente, e aos poucos a casa começou a revelar seus segredos, sem resistência, resignadamente. Vejo enfim de minha janela parte da sala, um corredor, talvez o quarto principal. Antes que possa enfim compreendê-la, os brutamontes derrubam, insensíveis, suas paredes. Em pouco tempo só tenho diante de mim o que foi um banheiro e que, pudica, a casa busca esconder atrás da única divisória que sobrou. 

A casa resistia sombria e fechada do outro lado da rua há tempos. Curioso, eu tentava adivinhar suas entranhas, enfiando os olhos sorrateiramente pelas frestas das vidraças quebradas. Do meu quarto, olhava para ela, por cima, com pesar. Tentava imaginar como ela era com pessoas vivendo ali dentro. Quem seriam elas? Para onde foram? Morreram? Mudaram-se? Por quê?

Agora, a imensa casa de três andares, garagem, amplo jardim na frente, com algumas estátuas espalhadas de enfeite sobre ele, virou escombro. Os caminhões entram e saem do terreno carregando o que restou da mansão de mais de cem anos. Sobre a pilha de entulho do último carreto, parte de uma das estátuas, o busto de uma deusa grega, talvez Atena, cortada ao meio, certamente pela retroescavadeira que pôs abaixo o casarão e que agora joga seus restos sobre as caçambas das carretas que vieram recolher os despojos e formam o cortejo fúnebre.

No lugar da casa tradicional, subirá um prédio que promete, está no out door, segurança 24h, vaga para dois automóveis, espaços flexíveis e funcionais, sistema interno de câmeras, privacidade, área de lazer com piscina, quadra de futsal e futevôlei, entre muitas outras comodidades. Os novos moradores talvez nunca saibam quem esteve naquele espaço antes deles. As novas famílias nem imaginam que as pilastras que sustentam seus apartamentos foram cravadas sobre o lar dos que ficaram para trás.

A cidade desse jeio se transforma. Sempre foi assim. Saem de cena as casas com seus jardins, sobem em seus lugares prédios com varanda gourmet. Os que construíram o casarão só pensavam em espaço e conforto. Os do prédio só pensam em segurança e privacidade. No lugar de uma família tradicional, com menos de uma dezena de componentes, estarão dezenas de famílias, com centenas de moradores sobre o mesmo espaço. Vamos nos empilhando uns sobre os outros, assim como os edifícios soterram os casarões e os shoppings engolem o comércio de rua.

Estamos fadados ao encarceramento dos condomínios burgueses. Viveremos cada vez mais enclausurados em bolhas de vidro e esquadrias de alumínio, voltados para dentro, a salvo da miséria e da violência das ruas, abandonadas aos excluídos pela meritocracia. Estaremos ligados apenas pelo wifi e, vez ou outra, veremos parte do mundo exterior pela câmera do interfone, quando pedirmos pizza para maratonar a série ambientada num mundo distópico, em que seres humanos, sobreviventes de uma hecatombe, lutam contra vampiros que vagam lá fora, à espera de nos arrastarem também para aquela vida de horror e desesperança.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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