Imagino que tenham ouvido falar no filme “Golpe de Mestre” (1973), com Paul Newman e Robert Redford, ou no argentino “Nueve Reinas” (2000), com Ricardo Darín e Gastón Pauls. Ambos giram em torno da tentativa de passar a perna na vítima escolhida pelos protagonistas. Pois, nesta semana, tive a experiência de quase ser pega numa dessas tramoias. E, como estamos em clima de festas juninas, foi inevitável para mim a lembrança das quadrilhas e do grito “É mentira”. Não posso afiançar, cem por cento, a falsidade da situação. No entanto, consigo elencar diversos elementos característicos do gênero textual “golpe”. Por isso, minha crença de ter escapado de entrar pelo cano. Aconteceu assim…
Fui à rua fazer compras por volta de duas da tarde. Na saída de um hortifruti, um senhor muito nervoso e com sotaque interiorano me interpelou. Alertou logo não querer dinheiro (sempre fazem isso para garantir a abordagem) e me pediu a direção de uma alfaiataria ali por perto. Disse não a conhecer. Já me afastava, quando o interlocutor começou a narrar sua história triste (há sempre uma: longa, trágica e barroca). Ele vinha de Petrópolis (estranho escolherem com frequência essa cidade) para recolher o prêmio de um bilhete, algo em torno de cinquenta mil, mais uma mobilete e não sei que outras tranqueiras. Difícil entender com clareza os dados apresentados aos borbotões (outra técnica do gênero). Enquanto falava, o homem tirava e colocava no bolso um enorme maço de dinheiro (queria mostrar ingenuidade ou honestidade?). Repeti desconhecer a tal loja e sugeri que ele me lesse o nome da rua. Neste ponto, confessou ser analfabeto, trabalhar de caseiro e morar com a mãe de oitenta e dois anos (quadro de tragédias completo para despertar empatia).
Foi então, ao me preparar, de novo, para ir embora, que entrou em cena o segundo personagem da trama (claro, golpes precisam de um sidekick). O indivíduo, com sotaque catarinense ou de outra região do sul, aproximou-se solícito, oferecendo ajuda. Eu lhe contei que o senhor procurava um alfaiate, do qual eu nunca havia ouvido falar, para receber um prêmio. O tal inteirou-se de toda a história, não sem antes alertar o petropolitano sobre o risco de expor seu dinheiro na rua, e perguntou pelo bilhete premiado. Ao vê-lo, acessou no celular a página da Caixa e fez questão de me mostrar os números e o resultado. De fato, o caseiro teria ganho não apenas cinquenta mil, mas doze milhões e estava sendo passado para trás pelo alfaiate.
Era preciso ir à Caixa receber o prêmio. O problema (aí começam as complicações que enredam o pato da trampa, neste caso, eu) era o homem não ter documentos, só a certidão de nascimento. O bom samaritano do sul ofereceu-se para ligar para o telefone no verso do bilhete. Ao contrário do que havia ocorrido na hora de mostrar os números contemplados, ele, agora, escondia seu celular dos meus olhos enquanto discava. Falou por um momento e, depois, colocou no viva voz, com a desculpa de mostrar os procedimentos ao contemplado. Cada vez que eu tentava arredar pé, surgia com algum enredo para me manter engajada na trama. Segui seus passos.
Resumindo a conversa telefônica, o ganhador deveria ir com urgência à Caixa, pois o prêmio prescreveria em noventa dias (era de 25 de março). Seria possível abrir uma conta no banco, com a presença de duas testemunhas idôneas (eu até poderia me considerar como tal; quanto ao outro, só o diabo saberia). Na falta de documentos, contudo, a situação ficaria bem difícil.
Para finalizar o plano, após essa elucidação preciosa, o segundo homem me encarou com olhar sincero e sorriso animado: “O que acha? Ajudamos? Vamos fazer isso por ele?”
Para mim, estava clara a armadilha. Apenas restaria saber como pretendiam me espoliar. Eu, óbvio, não iria ficar ali para descobrir. “Sinto muitíssimo. Estou com uma pessoa doente em casa e preciso voltar correndo. Sugiro que tentem ir à Caixa para resolver a questão.” Dito isso, os deixei o mais rápido possível.
Fico me perguntando por que fui escolhida. Teria eu cara de gananciosa, facilmente seduzida pelos milhões, ou de trouxa mesmo? Para minha sorte, creio que a vida urbana me deu um bom desconfiômetro e a prática de leitura e escrita, um faro para especificidades de gêneros textuais (a construção estava perfeita em demasia). Desta vez, o tiro dos golpistas saiu-lhes pela culatra.


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