“Você tem algum problema, doutor Teotônio?” Perguntavam-me vez ou outra. Enfurnado num quartinho, punha-me a escrever contos, crônicas e um projeto pitoresco de romance. Não passava da página três, em nenhuma das tipologias textuais. Lia no tempo livre, escrevia também na vagueza da rotina. Contudo, nada saía. “O senhor tem algum problema, Teotônio?” Novamente essa frase maldita! O que há de errado comigo?
Trabalho como advogado, em um escritório prestigiado. Mal remunerado, sou assistente jurídico. Meu nome é Teotônio Lamarca. 36 anos. Formei-me em Direito em universidade pública. Também aspirante a escritor desde a juventude. Ponho-me a escrever contos, crônicas e caminhando em um projeto de romance. Melhor, claudicando no projeto em questão. Aos 36 anos de idade não obtive conquistas, prestígio e família. Um homem só, próximo aos 40 anos, que não conseguiu ser como José Teixeira Abreu. Este é advogado, dono do escritório em que trabalho. É nababo, rico, endinheirado. Homem próspero de posses, pobre de espírito. É o que penso. Finalizou o bacharelado em Direito, visto que seu pai é dono de um grande escritório. Montou o dele às expensas de seu pai. Apesar das posses, não o vejo como um virtuoso. É vicioso. Nem eu possuo virtudes, mas uma das poucas é honestidade, tanto no que tange ao caráter tanto intelectual. Ponho-me a ler e a escrever no tempo livre. Diálogo com Teixeira Abreu, se não de negócios e processos, causas ganhas, não há. Enxota-me e manda-me retornar ao trabalho. Desgraçado!
“O senhor tem algum problema, doutor Teotônio?!” Até Teixeira de Abreu, em tom rude, questionava-me. Era por qualquer besteira: algum erro na peça, uma manifestação errônea ou dizer “imbelicidades”, era como ele pilheriava de minhas “manias de escritor”. Possuo algum empecilho em meu ser? Chamam-me para reuniões fora do trabalho. Espécie de saraus. Todavia, ausento-me de todas. Necessito da leitura e da escrita. Vocação é aquilo que damos a vida e, até, por ela perdemos esta. A minha vocação é a escrita, despejar minhas pequenezas no papel. Ante Teixeira de Abreu, sou pequeno. Pequeno verme da sociedade. No entanto, pequeno verme do espírito é o Sr. José Teixeira de Abreu. Quiçá, menos que isso, porquanto não faria uma dedicatória a um verme que me rói diariamente, como fez Brás Cubas.
Estava em casa. Local fechado, um cortiço, onde vivia. Meu ordenado não me permite luxos. Possuo apenas uma máquina para escrita e centenas de romances ao meu alcance. Quando não trabalho, deleito-me nas grandes obras de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e por aí vai. Talvez, leitor, nem saiba tu a respeito dos autores que mencionei. Você deve ser normal. Não devem lhe questionar: “O senhor tem algum problema, Teotônio?” Às vezes recebo a alcunha de doutor, na maior parte não. Sou tido como verme, como anormal por não me encaixar no seio social. Um verme na sociedade, o qual o Doutor José Teixeira de Abreu quer extirpar. Ele, no entanto, é um verme diferente: é um verme rastejante no lodo da ignorância.
Meu ódio aumenta cada vez mais. Meu rancor para com Teixeira de Abreu, seu sarcasmo para comigo, sua conversa banal. O homem que somente pensa nas posses e no vintém, no fundo, não é ninguém. Mas para todos, sou eu o ninguém. Aos 36 anos, sem posses, ordenado baixíssimo e escrevendo bobagens e pequenezas.
“Morreu Teotônio Lamarca!” O que foi? “Suicídio”, diziam nas ruas, nos bairros, na cidade toda. “Era jovem. Por qual motivo faria isso?” A polícia investigava o caso. Certeza não havia acerca da causa mortis. “Leonardo, veja!” – exclamava o soldado. “Soldado Silva, abra o embrulho. O que há aí?” – questionava o sargento. A polícia encontrou alguma coisa que pode desvendar, quiçá, a causa do falecimento de Teotônio Lamarca. Abriram. Uma folha escrita, completa, à mão. “Soldado, leia, por gentileza, o escrito no papel.” O soldado, prontamente, pôs-se a ler:
“Ao verme que primeiro roeu meus dias, minha mente, meu trabalho, meus escritos e minha vida, dedico como saudosa lembrança este breve relato. Caro Doutor José Teixeira de Abreu, possuidor das menores riquezas que um homem pode conseguir. Dedico-te este breve manuscrito, o qual dedico meu tempo perdido. Há uma teoria enunciada por Machado de Assis em “Teoria do Medalhão” que, com certeza, seu pai deve ter-lhe ensinado. Um pai aconselha seu filho, que faz 21 anos de idade, a como proceder na vida adulta. A grande questão é ser medalhão. O medalhão possui muitas ideias, que são dos outros; não se permite a criação das ideias próprias, pois isto é perigoso. Não pode alimentar o próprio espírito. Esqueceu de si em prol de uma imagem construída com muito labor, suor e com auxílio de seu pai, àquele a quem deve a guinada ou virada de chave de seu sucesso. O senhor aniquilou a si mesmo em prol do sucesso. Eu, por outro lado, não. Vivi e segui minha vocação. Não deu certo. Arrisquei-me a não ser medalhão, não apliquei o segredo do bonzo e não me tornei a imagem do reflexo espelhado machadiano. Simplesmente busquei o ser, a minha essência e fracessei… Contudo, o senhor buscou reflexo do espelho, aplicou o segredo do bonzo e tornou-se medalhão: portanto, aplausos ao senhor pelas miserabilidade de suas conquistas! Deixo esta despedida ao senhor. Espere que chega a tu, doutor. A ti confio as breves reflexões antes de minha despedida deste mundo, do terreno, para o plano espiritual. Adeus, senhor José Teixeira de Abreu!“
Findada a leitura, o sargento diz ao soldado: “Homem culto e inteligente. Buscou alçar voos com o âmago de seu ser. Portanto, observe soldado: às vezes, precisamos ser medalhões; seguir o segredo do bonzo; e sermos o nosso reflexo no espelho. Lembro-me destas histórias em Machado de Assis, soldado. Quer saber? O falecido pode ter razão, afinal. Lerei as indicações dele. Só não espero enxergar o mundo sob a ótica que ele enxergou: é perigoso! A verdade nua e crua, às vezes oculta, é menos danosa, pois ao invés dela ser uma luz, esta mesma luz pode cegar o sujeito.” Dito isso, o soldado e o sargento seguiram com o corpo para o IML.


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