@revistaentrepoetas / @professorrenatocardoso

3 cliques

DECLARAÇÃO

Eu adoro palavras, mas encasqueto com algumas. Não gosto, por exemplo, de bispa, asma, rinite, talisca, cotonete. Nomes muitas vezes me afastam dos produtos que representam. Não bebo Gatorade, não como Nuggets e tenho horror a Trakinas, que devem fazer tanto mal ao organismo quanto o som desses oniônimos faz aos meus ouvidos.

Na farmácia, perco tempo olhando os rótulos. Divirto-me, num joguinho típico de quem não tem mais o que fazer, a descobrir para que serve um remédio pelo seu nome fantasia. Acho Melhoral simpático, mas não tomo de jeito nenhum um troço chamado Caspiol. Transpulmin é uma palavra constipada. Resprin provoca-me coceira no nariz, Anauseum me dá ânsias, e tenho medo de que descubram meus segredos se um dia tomar infiltran.

Quem sai de uma depressão tomando Escitalopram? Trato bem os dentes para não ter que fazer uso de Dordentil. Espero não precisar ingerir nunca na vida Prostatol nem Bexiguina. O enalapril me causa efeitos colaterais só de ouvi-lo.

Adoraria gostar de cereja, morango, avelã e tâmara porque seus nomes são sensuais. O do Chuchu é sem gosto como o fruto. Abóbora e melancia são nomes voluptuosos. Jerimum é depravado. Cenoura é longilíneo. Melão é um nome muito doce. Feijão é forte, beterraba é calipígio, batata é infantil.

Com as gírias, sou esquisito. Não uso, de primeira, porque não me sinto confortável com elas, que me arranham a garganta. Demoro até que estejam maduras, para levá-las à boca. Quando já as mastiguei bastante, dou-lhes lugar, de teste, numa frase. Se não cair bem o uso, expurgo-as definitivamente.

Os estrangeirismos não ficam à vontade nunca nas minhas frases. Até que tento lhes dar emprego, porque sei que estão em terra estranha e o quanto é difícil a adaptação. Sinto até pena deles, que se retorcem em maxilares que não foram feitos para eles, mas seus sons estranhos embolam na minha traqueia e, quase sempre, por isso, cuspo-os e acabo os substituindo pelo que já tenho na minha prateleira doméstica de vocábulos.

Algumas expressões chegam e tomam de assalto a conversa da gente. Não me rendo fácil e levo um tempo até que me sinta pronto para usá-las, como faço com as demais novidades. Se bem que por algumas tomo antipatia de cara e as arquivo, como faço até hoje com em domicílio e para além de.

Adoro as palavras, e não me canso de me misturar com elas. Gosto quando ouço uma desconhecida, que me obriga a procurar no dicionário seus significados. No cartório das palavras, pesquiso a origem, a família, encontro parentes próximos e distantes, fuço até a primeira geração a danada, que é como uma pepita.

Machado me apresentou várias. As mais curiosas, protonotário, panegírico e emplasto, entre muitas outras, andavam comigo, a tiracolo, quando as encontrei jogadas no Dom Casmurro, lá na adolescência. Surgia uma chance, e eu sacava uma delas, cheio de empáfia. “Acho que você deveria usar um emplasto, essa ferida está feia.” Ou: “Você não precisava fazer um panegírico: bastava dizer que não queria e pronto!” Não me lembro de ter se apresentado oportunidade de usar o protonotário, porque não cheguei ao Vaticano, apesar de quase abraçar o sacerdócio. Isso foi coisa da juventude.

As palavras têm mil camadas e, camaleônicas, acomodam-se no poema e na sentença, no romance e na bula, na letra e na tese, no xingamento e na declaração de amor, sem cerimônia. Podem ser arma ou ferir mais do que um projétil, porque não matam na hora: seu efeito rói dentro da gente por dias, meses, anos, décadas. Mas são o bálsamo que arrefece o sofrimento, se ditas no momento certo, na dose adequada.

Adoro palavras e queria ter todas à disposição sempre, mas só ando com algumas, poucas, no bolso, pras trivialidades e pro troco, quando saio à rua. Guardo as mais valiosas só pra quem, como eu, as aprecie. E quando encontro assunto e companhia que me seduzem, sou perdulário e, juro, gasto à vontade, falando pelos cotovelos. Palavra!


Descubra mais sobre Revista Entre Poetas & Poesias

Assine gratuitamente para receber nossos textos por e-mail.

Deixe um comentário

Sobre

Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

Com uma equipe formada por escritores de diferentes idades e áreas do conhecimento, buscamos sempre oferecer conteúdo de qualidade, promovendo o diálogo entre gerações e perspectivas diversas.

Se você deseja ter seu texto publicado, envie sua produção para:
revistaentrepoetasepoesias@gmail.com

Acesse: www.entrepoetasepoesias.com.br
Siga no Instagram: @revistaentrepoetas / @professorrenatocardoso
Canal no WhatsApp: Clique aqui para entrar

PESQUISA